__________ PublicidadeAs garras dos EUA na África
Pepe Escobar, Asia Times Online 20/10/2010
O que Gaddafi nunca fez contra Benghazi – e não há qualquer sinal de que algum dia fizesse – o Conselho Nacional de Transição está fazendo contra Sirte. Como a ofensiva assassina dos EUA em Fallujah, no triângulo sunita do Iraque no final de 2004, Sirte está sendo destruída, para “salvá-la”. Sirte, a nova Fallujah, é trazida até vocês pelos rebeldes da OTAN. A R2P morreu. RIP.
Desconfie de desconhecidos que trazem presentes. A amazona pós-moderna e secretária de Estado dos EUA Hillary Clinton finalmente pousou em Trípoli – viajando em jato militar – para homenagear o sinistro Conselho Nacional de Transição [ing. Transitional National Council (TNC)], dos oportunistas/desertores/islamistas antigamente conhecidos como “rebeldes da OTAN”.
Clinton foi saudada na 3ª-feira “no solo da Líbia livre” (palavras dela) por o que o New York Times antiquadamente descreveu como “uma milícia irregular” (tradução: gangue pesadamente armada que já está fazendo o diabo contra outras milícias armadas pesadamente armadas), antes de reunir-se com o chefe do Conselho Nacional de Transição Mustafa Abdel-OTAN (antigamente conhecido como Jalil).
O grosso dos presentes dos EUA – US$40 milhões –, além dos $135 milhões já desembolsados desde fevereiro (quase tudo é “ajuda” militar) corresponde a ‘negócios’ arranjados por “contratados” (i.e. mercenários) que tentam surfar na onda dos equipamentos antiaéreos portáteis que, hoje, já estão convenientemente bem guardados em armazéns secretos dos islâmicos.
Clinton disse aos estudantes da Universidade de Trípoli que “Nós estamos ao lado de vocês”. Não é capaz de juntar os pontos e perceber que os shabab (jovens) que no início protestavam contra Muammar Gaddafi em fevereiro nada têm a ver, absolutamente, com os oportunistas/desertores/islâmicos do Conselho Nacional de Transição que sequestraram aquelas manifestações. Mas, sim, teve tempo de revelar outra política “secreta” dos EUA: os EUA querem Gaddafi “vivo ou morto”, ao estilo de George W Bush (ou alvo de assassinato premeditado [ing. targeted assassination], ao estilo de Barack Obama).
A nova Fallujah
Em exaustivas seis horas e meia em solo da “Líbia livre”, Clinton, é claro, não teve tempo para embarcar num helicóptero e ir a Sirte, para ver com os próprios olhos como a OTAN pratica sua R2P (“responsabilidade de proteger” civis).
Algumas centenas de soldados e nada menos que 80 mil civis foram bombardeados sem parar durante semanas pela OTAN e os ex-“rebeldes”. Só 20 mil civis conseguiram escapar. Não há comida. Água e eletricidade foram cortadas. Os hospitais estão desertos. A cidade – sitiada – está em ruínas. Os imãs de Sirte emitiram um fatwa (decreto) que libera os sobreviventes para comer cachorros e gatos.
O que Gaddafi nunca fez contra Benghazi – e não há qualquer prova de que algum dia fizesse – o Conselho Nacional de Transição está fazendo contra Sirte, cidade natal de Gaddafi. Como a ofensiva assassina dos EUA em Fallujah, no triângulo sunita do Iraque no final de 2004, Sirte está sendo destruída, para “salvá-la”. Sirte, a nova Fallujah, é trazida até vocês pelos rebeldes da OTAN. A R2P morreu. RIP.
E a coisa toda é muito mais imunda. A Líbia é só um ângulo da estratégia de vários vetores dos EUA na África. Michelle Bachmann, a ensandecida aspirante a candidata presidencial dos EUA, durante o debate entre os candidatos Republicanos em Las Vegas, na 3ª-feira, disse tudo, sem querer. Mostrando sensacional conhecimento geográfico, referindo-se à nova intervenção de Obama, dessa vez em Uganda, Bachmann disse: “Obama já nos meteu na Líbia. Agora, está nos metendo na África.” Claro, a Líbia já não é parte da África. Como a Casa de Saud contrarrevolucionária desejava, a Líbia foi transferida para as Arábias (melhor que isso, só se for convertida em monarquia restaurada).
Sobre “Obama está nos metendo na África” (ver “Obama, rei da África”, 18/10/2011 [1]), aqueles 100 soldados das forças especiais dos EUA em Uganda, chamados de “conselheiros”, devem ser vistos como remix à moda da modernidade líquida, do Vietnã no início dos anos 1960s: lá, tudo também começou com um bando de “conselheiros” – e o resto é história.
O Exército da Resistência de Deus [Lord's Resistance Army (LRA)] do doido cristão místico Joseph Kony não passa hoje de 400 combatentes esfarrapados (eram mais de 2.000). Estão em fuga – e já nem estão mais em Uganda, mas no Sudão do Sul (hoje, um protetorado ocidental), na República Centro-Africana e ao longo da vasta fronteira com a República Democrática do Congo.
Assim sendo, por que Uganda? Entram em cena a empresa Heritage Oil PLC, com sede em Londres, e seu presidente, Tony Buckingham, ex – já se pode adivinhar! – “contratado” (quer dizer, mercenário). Eis o modus operandi da Heritage, descrito pelo próprio Buckingham: começam com “um primeiro movimento estratégico de entrar em regiões com vasta riqueza de hidrocarbonetos onde temos vantagem estratégica.”[2]
Tradução: em qualquer lugar onde haja invasão militar estrangeira, guerra civil, total colapso da ordem civil, onde se escondem os grandes negócios e o alto dinheiro. Daí a presença da Heritage no Iraque, na Líbia e em Uganda.
Lucrando no nevoeiro do pós-guerra, a Heritage assinou sumarentos negócios no Curdistão iraquiano protegida pelo governo central em Bagdá. Na Líbia, a Heritage comprou 51% de uma empresa local de petróleo, a Sahara Oil Services; significa que já está operando diretamente autorizações para explorar petróleo e gás. Pressionados sobre esse assunto, os chefões do Conselho Nacional de Transição tentaram mudar de assunto: disseram que nada teria sido aprovado até aquele momento.
Não há dúvidas de que a Heritage entrou na Líbia via um ex-comandante aposentado do exército inglês, John Holmes, fundador da Erinys[3], um dos maiores grupos de mercenários ativos no Iraque, além da Xe Services, ex-Blackwater. Holmes espertamente enviou as garrafas certas de Johnnie Walker Blue Label para Benghazi, endereçadas aos escroques certos do Conselho Nacional de Transição, seduzindo-os com o know-how dos mercenários da Heritage, especialistas em “segurança de campos de petróleo”.
Mercenário contratado, embarcar!
A avançada de Obama em Uganda também é gambito clássico do Oleodutostão. Os possivelmente “bilhões de barris” de petróleo das reservas recentemente descobertas na África Subsaariana estão localizados na sensibilíssima região transfronteiras entre Uganda, Sudão do Sul, República Centro-Africana e República Democrática do Congo.
Acreditem ou não, a Heritage era a principal empresa de petróleo em operação em Uganda em 2009, extraindo petróleo em Lake Albert – entre Uganda e a República Democrática do Congo – e jogando um país contra o outro. Depois, venderam a licença à Tullow Oil, na essência, empresa de fachada, também de propriedade de Buckingham, embolsando $1,5 bilhão no processo e, significativamente, sem pagar 30% dos lucros ao “filho da puta amigo de Washington”, o presidente Yoweri Museveni, de Uganda.
Entra em cena a empresa líbia estatal de petróleo, a Tamoil, parceira de Uganda no projeto para construir um oleoduto crucialmente importante até o Quênia. Uganda carece desesperadamente de um oleoduto em operação, para quando começarem as exportações, ano que vem. A guerra da OTAN contra a Líbia paralisou o gambito do Oleodutostão. Agora, todos os caminhos voltam a abrir-se para os negócios. A Tamoil desaparecerá de cena – mas outros podem também desaparecer.
Tentando dar jeito na confusão, o parlamento em Uganda – pouco antes de Obama anunciar a ‘avançada’ contra Uganda – congelou todos os contratos de petróleo, o que atingiu diretamente a francesa Total e a chinesa China National Offshore Oil Corporation, mas, mais seriamente, a Tullow Oil.
Mas agora, com as forças especiais de Obama “aconselhando” não só os ugandenses mas também os vizinhos, e mancomunadas com a Heritage – que é fachada para uma gigantesca operação petróleo/mercenários –, não é difícil adivinhar onde pousarão os contratos de exploração e venda do petróleo de Uganda.
A amazona firme nas rédeas
As operações “Unified Protector” [Protetor Unificado], “Odyssey Dawn” [Alvorada da Odisseia] e todas as demais metáforas homéricas ou outras, que se usaram para designar o bombardeio (mais de 40 mil bombas, na última contagem) do Africom (EUA) & OTAN contra a Líbia, levaram ao resultado almejado: a destruição do estado líbio (e grande parte da infraestrutura do país, para delícia dos urubus do capitalismo de desastre). Também levou à consequência letal, não desejada, daqueles mísseis antiaéreos dos quais os islâmicos já se apropriaram – razão mais do que suficiente para “guerra ao terror” no norte da África, afinal tornada eterna.
Washington não poderia estar menos preocupado com a “responsabilidade de proteger”, R2P; como a viagem de Clinton à Líbia mostra, a única coisa que importa é o pretexto para “garantir segurança” ao arsenal líbio – perfeita fachada para os mercenários norte-americanos e operadores anglo-franceses de inteligência ocuparem as bases militares líbias.
A regra pétrea é que a Líbia “livre” deve ser controlada pelos “libertadores”. Só falta combinar com as “milícias irregulares” (para nem falar da gangue de Abdelhakim Belhaj e de seus associados da al-Qaeda que, hoje, estão no comando militar de Trípoli).
Vale a pena lembrar que 6ª-feira passada, o Departamento de Estado dos EUA anunciou que estava enviando “contratados” para a Líbia; e que, no mesmo dia, Obama anunciou a “avançada” em Uganda. E que, dois dias depois, o Quênia invadiu a Somália – mais uma vez, sob o pretexto da “responsabilidade de proteger”, para proteger civis contra jihadis e piratas somalianos.
A aventura dos EUA na Somália parece, cada dia mais, mistura de Sófocles com os Irmãos Marx. Primeiro, foi a invasão da Etiópia (fracassou miseravelmente). Depois, Museveni mandou milhares de soldados ugandenses combater os militantes do grupo al-Shabaab (fracassou em parte: o “governo” apoiado pelos EUA mal consegue manter controle de alguns arredores de Mogadishu).
Agora, a invasão do Quênia. Bom sinal da inteligência da CIA é que seus agentes já estão há meses em campo, com bandos de mercenários. Não demora, e algum pistoleiro da contrainsurgência em Washington, que reze pelo catecismo do novo chefe da CIA David Petraeus, concluirá que a única solução é mandar um exército de aviões robôs tripulados à distância, os drones MQ-9 Reapers, dronar a Somália até não deixar viva alma por lá.
O grande quadro permanece: é o Africom do Pentágono estendendo seus tentáculos militarizados para tentar dominar o soft power chinês na África, que se pode resumir como: em troca de petróleo e minérios, construiremos o que quiserem que a gente construa, sem nem tentar vender para vocês nossa “democracia para idiotas”.
O governo Bush acordou para esse “risco” um pouco tarde demais – quando criou o Africom, em 2008. No governo Obama, o clima é de pânico total. Para Petraeus, a única coisa que conta é “a longa guerra” & esteróides – de coturnos em terra a exércitos de aviões-robôs. E quem são Pentágono, Casa Branca e Departamento de Estado, para discordar?
O geógrafo italiano e cientista político Manlio Dinucci é dos poucos a mostrar como funciona o neocolonialismo 2.0: basta examinar o mapa. Na África Central, o objetivo dos EUA é a supremacia militar sobre Uganda, Sudão do Sul, República Centro-Africana e República Democrática do Congo – no céu, com os drones; e em terra, com serviços de inteligência.
Na Líbia, o objetivo é ocupar uma encruzilhada estratégica absolutamente importante entre o Mediterrâneo, o norte da África e o Oriente Médio, com o lucro extra (nostálgico?) de o ocidente – Paris, Londres e Washington – finalmente voltarem ao comando das bases militares que tinham quando o rei Ídris estava no poder (1951-1969). É indispensável estabelecer controle sobre todo o norte da África, a África Central, o leste da África e – mais problemático – o Chifre da África.
A pergunta de um trilhão de dólares é como reagirá a China – que planeja seus movimentos estratégicos com anos de antecedência.
A amazona Clinton deve andar radiante. No Iraque, Washington destruiu meticulosamente o país inteiro ao longo de vinte anos, e acabou de mãos vazias – nenhum contrato substancial de petróleo. Clinton, pelo menos, conseguiu seu exército privado – os “conselheiros” que se instalarão na base dos EUA em Bagdá, maior que o Vaticano.
E, considerando que os novos “conselheiros” africanos de Obama serão pagos pelo Departamento de Estado, Clinton agora já tem seu próprio exército privado africano de mercenários. Depois de novembro de 2012, quem sabe Clinton decida abraçar o negócio dos “contratados”. Em nome da sagrada “responsabilidade para proteger”, R2P, naturalmente.
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Notas:
[1] Ver também “Carta de Barack Obama ao Congresso informando sobre o envio de soldados dos EUA para UGANDA”, 18/10/2011, aqui. [NTs]
[2] Ahram Online, Cairo, 4/10/2011, aqui
[3] Daily News and Analysis, New Delhi, 23/9/2011, aqui
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