Memórias recorrentes Por: Heloisa Magalhães – VALOR, via BlogdoFavre 13/01/2011Era 11 de janeiro de 1966, exatamente 45 anos antes da noite de início da tragédia na serra fluminense. Morava com minha família em uma casa no Cosme Velho construída por meu pai, engenheiro calculista. Para quem não conhece, é o bairro onde está a estação do bondinho de acesso ao Cristo Redentor, um vale entre belas encostas do Rio.
Acordamos, de madrugada, com uma chuva apavorante. Na véspera, já fôramos surpreendidos pela descida de parte da encosta atingindo os fundos da casa. Nada sério, mas na noite seguinte foi diferente, foi o dia em que o Rio enfrentou uma das grandes tragédias causadas por chuvas de verão. Morreram 140 pessoas. Um edifício inteiro caiu no bairro de Santa Tereza, matando grande parte dos moradores.
Naquela noite, terra e lama invadiram até o teto do primeiro andar da nossa casa, cobrindo e destruindo móveis e objetos na sala de estar, cozinha e varanda. No momento do desmoronamento, por sorte, os quatro filhos, estavam todos no quarto dos pais e ninguém foi atingido.
Passado o pânico com o barulho estonteante de montanhas de terra caindo e quebra dos vidros das janelas, vizinhos, solidários, vieram nos socorrer levando a família para suas casas, rua acima. Tudo debaixo de chuva torrencial.
O remanejamento da população é caro, mas deve ser feito.
Passado o susto, meu pai tratou de estudar geotécnica. Projetou um sistema de proteção na encosta no morro atrás da casa, cujo topo vinha silenciosamente sendo ocupado por moradias irregulares.
A terra jamais voltou a invadir a casa. Mas, por muitos anos, a cada verão, mesmo depois dos filhos terem seguido rumo próprio, bastava uma chuva forte para todos, tentando mostrar calma, telefonarem para saber se estava tudo bem por lá.
O Rio de Janeiro vive históricas e seculares enchentes. O jornal “Extra” mostrou, ontem, que apenas entre 2001 e 2010, todos os anos morreram pessoas vítimas de enchentes, totalizando 554 óbitos. Este ano, já houve 444 mortos identificados na região serrana fluminense.
Certamente muitas análises e mapeamentos já foram feitos, e a cidade reduziu as consequências protegendo encostas, deslocando moradores em áreas de risco.
Mas o que se sabe é que há planos que ficam nas prateleiras. Em Teresópolis, por exemplo, a defesa civil, na gestão passada, produziu um relatório detalhado e um chamado Plano Municipal de Redução de Riscos. Na atual, o plano foi refeito. A proposta era localizar todas as áreas de risco invadidas e tirar a população. Mas segundo uma fonte que acompanhou o processo, praticamente nada foi realizado.
A doutora em geografia do meio-ambiente Ana Luiza Coelho Netto, do Instituto de Geociências, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), defende uma ação ampla. Diz que o momento é um alerta para ser repensado o modelo de planejamento da ocupação de toda a região Sudeste, principalmente as áreas mais montanhosas. Ela lembra que nelas há deslizamentos, independentemente da presença humana. O problema é que hoje as terras são ocupadas desordenadamente, seja pela agricultura ou por habitações dos de baixa renda ou não, causando importantes perdas, e com isso acabam se configurando grandes catástrofes.
“Atrás das cicatrizes dos deslizamentos ficam clareiras nas encostas, perdendo-se elementos que dariam resistência ao solo. Com planejamento adequado, as chuvas de grande magnitude não impediriam o deslizamento, mas não atingiriam a dimensão das perdas que estamos assistindo”, afirma.
O também professor e economista da mesma UFRJ, Mauro Osório, estudioso do Estado, lembra que há décadas se sabe que a cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, conta com áreas abaixo do nível do mar. Uma delas é a Praça da Bandeira, perto do estádio do Maracanã, onde há um rio com o mesmo nome, parte dele canalizado, e as enchentes se repetem ano a ano.
Ele reconhece que foram realizadas muitas obras de contenção de encostas na cidade e que, ainda na década de 60, foi criado um instituto equivalente a atual GeoRio. Como muitos municípios não têm condições de arcar com os custos dos estudos de ocupação e processos de recuperação de encostas, sugere na linha da professora Ana Luiza a realização de um planejamento amplo, a adoção de um modelo de consórcios unindo prefeituras e o governo do Estado para a região serrana, em especial, contar com um trabalho permanente de proteção das encostas.
Osório lembra que o Estado do Rio de Janeiro sofreu com uma “lógica de políticos clientelistas” que não trabalharam com planejamento, facilitando invasão moradia em lugar precário causada, em boa parte, pela ausência de alternativa.
Sergio Besserman, ambientalista, membro do conselho diretor da WWF-Brasil que trabalha no tema mudanças climáticas desde 1992, avalia que não há solução de curto prazo e destaca que o diagnóstico é de três agendas.
Uma delas é a “do passado”, a da ocupação irregular, sem planejamento. “Ninguém fez nada na área de habitação e as pessoas tem que morar. Saíram procurando lugares mais baratos e vulneráveis. Mas, obviamente, não é possível realocar todas as pessoas da noite para o dia, é preciso tempo. No Rio, há 18 mil casas em locais de risco. Custa caro o remanejamento, mas os governos vão ter que lidar com isso”. Essa é a agenda do presente.
Ele destaca, contudo, que há “a agenda do futuro e as notícias não são boas”. Ele avalia que neste verão choveu como há 40 anos atrás e “não pode se afirmar que foi o aquecimento global, mas o certo é prever que vai voltar a chover assim e não vai mais demorar 40 anos para acontecer. As chuvas serão com mais frequência e intensidade”, alerta.
*Heloisa Magalhães é chefe de Redação no Rio de Janeiro. Excepcionalmente deixamos de publicar a coluna de Cláudia Safatle. E-mail heloisa.magalhães@valor.com.br
Remanejar as pessoas das áreas de risco é caro, mas tem de ser feito
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