Robert Fisk: A CNN errou tudo sobre o aiatolá Fadlallah

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No dia 08 de julho recebo uma mensagem da tradutora Caia Fittipaldi informando que a editora de noticiário do Oriente Médio da CNN, Octavia Nasr, foi sumariamente despedida  após postar uma mensagem no twitter.

Nasr foi despedida depois de lamentar a morte do aitolá Fadlallah. Ela escreveu no twitter:

“(Fiquei) triste por saber do falecimento do Sayyed Mohammed Hussein Fadlallah... Um dos gigantes do Hezbollah que eu respeito muito”.

Vejam bem, ela não defendeu nada em nome da empresa, não criticou a CNN, Nasr lamentou a morte de uma pessoa que foi um importante intelectual muçulmano, progressista, bastante  respeitado como pensador político, autor de importante reflexão política sobre o direito de resistir, incansável no trabalho pela unidade dos muçulmanos e que fazia oposição aos EUA e à sua política expansionista.

Caia relatava em seu e-mail que a morte de Sayyed Mohammed Hussein Fadlallah foi comentada em todos os grandes jornais e televisões do mundo, que ela própria havia assistido a um programa inteiro dedicado a ele, na TV5, francesa.

A CNN agiu como o Grupo Abril que despediu o editor da National Geographic por fazer críticas à matéria de desjornalismo de Veja sobre a questão indígena.

O que me chama a atenção em ambos episódios é o fato dessas empresas de comunicação que adoram proclamar sobre a liberdade de expressão não respeitarem de modo algum que seus funcionários exerçam a liberdade de expressão.

No Brasil o Comunique-se deu a notícia, mas não se preocupou em descobrir quem era a editora despedida pela CNN ou qual era a biografia do falecido cuja morte Nars lamentou no twitter.

Bem, para que não fique dúvida sobre o valor da editora que a CNN perdeu por intolerância e o valor do intelectual que morreu, reproduzo o artigo do Robert Fisk, uma sumidade em se tratando do jornalismo sobre Oriente Médio e mais uma vez, agradeço à Caia pelos seus esforços constantes de traduzir para a blogosfera brasileira os excelentes artigos que não nos chega pela mídia grande.

A CNN errou tudo sobre o aiatolá Fadlallah Por Robert Fisk 10/7/2010, The Independent, UK Tradução Caia Fittipaldi

Se me consultassem, eu adivinharia. A CNN demitiu um de seus principais editores de Oriente Médio, Octavia Nasr, por ter divulgado pelo Twitter elogio ao Grande Aiatolá Sayyed Mohammed Hussein Fadlallah do Líbano: “é um dos gigantes do Hizbollah que eu respeito muito.”

Bom, não foi homem do Hizbollah, mas isso nada altera. E, sim, foi um gigante, sem dúvida alguma. Foi homem de imenso saber de jurisprudência, defensor dos direitos das mulheres, combatente incansável contra os ‘crimes de honra’, crítico do sistema teocrático de governo do Irã e... OK. OK. Melhor eu parar, antes que me telefone a tal de Parisa Khosravi[1], que atende pelo título de “primeira vice-presidente da CNN” – e sabe-se lá o que fazem essas figuras e o quanto ganham para desnoticiar e des-decidir. – Parisa foi quem anunciou que tivera “uma conversa” com Nasr (que trabalhava na CNN há mais de 20 anos) e que “decidimos que ela deixará a empresa.”

Oh, santo deus! A pobre velha CNN, cada vez mais acovardada, a cada minuto. Por isso, claro, ninguém mais presta atenção às opiniões da CNN. Exatamente o contrário do que se deve dizer sobre Fadlallah.

Os EUA divulgaram que Fadlallah teria abençoado o homem-bomba que explodiu a base naval dos EUA em Beirute em 1983, matando 241 homens e mulheres que lá serviam. Fadlallah negou, várias vezes, em vários encontros que tive com ele, e acredito nele. Homens-bomba, por loucos que nos pareçam, não precisam de bênçãos; morrem convencidos de que cumprem seu dever diretamente frente a Deus, sem precisar de ajuda de marja como Fadlallah. Com deus ou sem deus, há provas de que Washington usou dinheiro dos sauditas para preparar o carro-bomba que deveria ter assassinado Fadlallah em 1985. Fadlallah não morreu. Mas os EUA mataram mais de 80 civis inocentes naquele atentado. Não sei o que a Sra. Khosravi pensaria sobre isso. “Sem comentários”, provavelmente.

Fato é que até a embaixadora britânica no Líbano Frances Guy, escreveu em seu blog pessoal que Fadlallah era homem que ela muito respeitava e com quem gostava muito de conversar no Líbano. É mistério impenetrável para mim, o que leva gente importante a ter blogs pessoais. Mas a embaixadora britânica virou alvo da fúria do ministro de Negócios Exteriores de Israel, cujo porta-voz disse que “seria interessante” saber o que Londres pensa das opiniões de sua embaixadora.

Muito mais interessante seria, acho eu, saber o que pensa Liberman sobre os passaportes britânicos que seu governo roubou e adulterou, para infiltrar um assassino israelense em Dubai, faz pouco tempo.

Tudo isso ajuda a mostrar que Fadlallah – que também foi poeta – continua a perturbar muita gente, mesmo depois de morto.

Quando meu amigo e colega Terry Anderson foi sequestado em Beirute (16/3/1985) – depois de sete anos seqüestrado, chegou a ser o refém que mais tempo permaneceu em mãos dos sequestradores – fui falar com Fadlallah, que Anderson havia entrevistado há pouco tempo. “Ele esteve em minha casa e está sob minha proteção”, disse-me Fadlallah. “Considero-o meu amigo.” Essa frase muito provavelmente salvou a vida de Terry. Por extraordinária coincidência, Terry esteve em visita a Beirute essa semana com um grupo de alunos, mas não sei se a visita que fez aos subúrbios do sul de Beirute lhe valerá alguma medalha.

Naquele tempo, os jornalistas nos referíamos a Fadlallah como “líder espiritual” do Hizbollah, o que não era verdade. Fadlalah apoiou a resistência libanesa durante a invasão israelense em 1982 e era feroz opositor da política dos EUA para a região – exatamente como todo mundo, inclusive os EUA hoje, me parece – e pôs fim às sangrentas cerimônias dos xiitas na Ashura (quando os xiitas se autoflagelam, na data que marca a morte do filho do Profeta).

Voltei a procurar Fadlallah, outra vez pensando em sequestro. Estava com viagem marcada para Bagdá e queria alguma orientação sobre como não ser sequestrado. Ouviu-me com extrema gentileza e recomendou que eu procurasse um amigo seu, também religioso xiita, na capital do Iraque. Foi o que fiz, e fui escoltado a Najaf e Karbala por um aluno do amigo de Fadlallah, que viajava no banco da frente do carro, em trajes religiosos, o tempo inteiro lendo o Corão. “Fiquei muito preocupado com você”, disse-me o amigo de Fadlallah, quando voltei a Bagdá. E o senhor só me diz agora, respondi.

Mas havia outro motivo pelo qual Fadlallah ajudou-me. A cada momento, enquanto estive nas cidades santas do Iraque, tinha de encontrar-me com algum clérigo xiita, todos ex-alunos de Fadlallah. E cada um deles me entregava enorme pilha de escritos e documentos – seus respectivos sermões, ao longo de 10, 15 anos. A todos prometi que entregaria os sermões a Fadlallah. E foi o que fiz, um mês depois, quando um Fisk que não dava um passo sem olhar em volta, com medo de ser seqüestrado, carregava duas malas cheias de papéis pelos subúrbios do Hizbollah, no sul de Beirute. Fadlallah recebeu-me com um vasto sorriso. Sabia o que havia nas malas. Mr. Fisk carregara mais saber jurisprudencial xiita do que jamais saberá avaliar. E Fadlallah sabia sobre o que andavam falando os seus colegas em Najaf e Karbala.

Francamente, nada, no mundo, me interessa menos do que a opinião da vice-presidente Khosravi da CNN sobre essa história – desde que me poupe de uma de suas “conversas”. – Tampouco me interessam a opiniões do ministro de Negócios Exteriores de Israel. Nem me interessa o que pensem embaixadores britânicos, vale lembrar.

Não tenho dúvida alguma de que Fadlallah foi homem sério e muito importante, cujos sermões sobre a necessidade de regeneração espiritual e de mais generosidade fez mais bem que o banho de retórica que sempre afogou o Líbano. Seu funeral foi acompanhado por centenas de milhares de pessoas, em Beirute, na 3ª-feira. Para mim, não foi surpresa.


[1] Sobre ela, em CNN