Hoje a deputada Manuela escreveu no twitter:
@deputadamanuela: melhor parte de pegar a estrada é parar para tomar café e comer :)
Lembrei imediatamente das estradas paulistas, mineiras e baianas da década de 1970 quando na infância íamos do interior (ou do litoral paulista) para o sertão baiano, a terra de minha mãe, em Riachão do Jacuípe. Resolvi trazer à tona, novamente, a crônica de memórias da infância. Espero que apreciem.
Julho era muito curto e só viajamos se algo de muito ruim acontecesse. Dezembro era o mês favorito, era irmão de janeiro e nos tempos de criança, ainda carregávamos fevereiro junto. Era permitido ‘comer’ uns dias de escola, por isso, nem dava bola se a professora reclamasse. Gostava da sala de aula, sentia saudades dos amigos e trazia um sotaque diferente. Tinha desculpas (das boas) pra tudo isso. Estava na Bahia:
— É longe professora, viagem cara, de dias....
No ônibus já ia sentindo o cheiro.
Tem perfume de infância a cozinha de minha avó: carne de sol espetada sobre a brasa, outras penduradas por cima do fogão à lenha. Moscas rodeavam tudo. Um zumbido surdo, constante. Não punha reparo, só as mãozinhas ágeis davam conta da função: espantar as ditas pra fazer festa pro milho, amarelo bem claro, estourando, tostando minhas mãos gulosas. Os tomates cerejas da salada rala, rala como o verde da vida sertaneja, feijão de corda, farinha e arroz papa. À tarde: beiju, bolacha d’água e café torrado. A noite caía cedo e o tio mais moço, o mais lindo de todos, contava causos, acocorado no alpendre da casa de taipa.
Todos os dias eram uma festa sem fim: Acompanhar os passos largos de tio Pedro, seguindo determinado pra roça, feliz, com as chuvas de janeiro. Olhava os brotos de feijão e colhia umas bagas pro almoço. Conferia se a mandioca daria farinha farta pra pôr no silo que aguardava, pacientemente, na sala, até ficar de novo cheio até o teto. Silo que ouvia a festa de toda a vizinhança que corria pra Casa de farinha.
Era o tempo das rezas, dos maxixes, carurus e tinha procissão da Santa que se hospedava nas casas pra ouvir as ladainhas das mulheres, sentir o cheiro de vela, de bênção e de preces.
Ajudávamos como podíamos, eu, meus irmãos e primos. Os primos da roça riam de nós, os desajeitados primos da cidade. Não ligávamos, ríamos também e tio Pedro ria.
O verão trazia o riso pra roça, riso de menino brincando em açude, caindo de cavalo e levando surra de rabo de vaca. O verão trazia as estrelas, nas noites escuras, que ajudavam o tio a contar histórias de medo, de assombração, de meninas que tinham cabelos verdes, mortas por madrastas malvadas, de meninos pretos castigados até a morte, de vaqueiros corajosos que tinham salvado o mundo inteiro, de bichos falantes e inteligentes que protegiam seus donos, fosse bicho que voa, que anda, fosse bicho pequeno ou grande. Meu tio jurava que tudo era verdade:
[caption id="attachment_2166" align="aligncenter" width="225" caption="Tio Pedro em foto de 2008."][/caption]
— Tio Pedro é cristão, não jura em falso pra amedrontar menino!
Boi Zebu era a comprovação de tudo. Ele tinha socorrido minha avó que se atrevera a espiar vaca que deu cria. Boi Zebu mugiu, urrou alto e chamou tio Pedro, enquanto minha avó, estirada no chão, cobria a cabeça com as mãos ensangüentadas. Tio Pedro ouviu boi Zebu de longe e entendeu e correu e boi Zebu já estava enfrentando a vaca, chifrando-a, protegendo minha avó, desmaiada no chão. Tio Pedro chegou e a vaca, ferida, afastava-se com seu bezerrinho, fula da vida com boi Zebu. Boi Zebu virou herói da família, a criançada toda o adorava: boi mansinho que havia salvo a vida da avó. O tio não o vendia por dinheiro nenhum do mundo. Boi Zebu era a prova das verdades de Tio Pedro.
[caption id="attachment_2167" align="aligncenter" width="225" caption="Tio Pedro em Riachão, 2008."][/caption]
Minha avó não perdeu a coragem. Era mulher forte e cheirava a fumo e a água de pote. Vivia com a brasa na colher pra acender o pito, encostada na porta, nos dava pito, ao nos ver afundando no açude. Ríamos e fingíamos ser peixe. Ela ralhava mais forte, saíamos e a roupa secava, enquanto vencíamos ou perdíamos o concurso de quem conseguia tirar o bago inteiro do licuri. Minha avó nunca nos beijava, mas seu abraço nos dizia com a força do aperto:
—Sejam bem- vindos, estávamos com saudades! Minha avó só lacrimejava seus olhos azuis, enrugados, com a fumaça do seu cigarro de palha e com a nossa partida: mulher nordestina não tem frescura, chora com a morte dos filhos e a partida é uma meia morte.
No inverno os cheiros mudavam todos. Não havia o leite fresco embebendo imbu, açúcar cristal completando a coalhada, nunca encontrada nas prateleiras dos mercadinhos da minha cidade:
— Mãe, quero a coalhada com imbu da minha avó! Era a ladainha do retorno que a mãe aflita, não podia atender: onde o imbu da casa da minha avó?
Na cozinha de minha vó Antonina se encontra o nó de minhas lembranças, foi lá que eu deixei todos os cheiros preciosos do meu tempo de criança.
PS. A crônica é antiga, tem pelo menos uns 10 anos, já foi publicada em jornais impressos, listas literárias e outros sites. Esta versão saiu daqui.