Vivemos num país desigual e ainda muito injusto, no qual a idéia de direitos é distante da realidade de ampla maioria da população: elementos da cultura do compadrio e do clientelismo, do patriarcalismo e do racismo prevalecem sobre uma cultura de direitos.
Por força destas relações de exploração e opressão, grande parte da população está excluída de direitos humanos fundamentais como o direito à alimentação, à educação, à saúde de qualidade, à uma vida digna e livre de violência. No nosso país a luta por direitos é criminalizada. Saudamos por isto a iniciativa desta Comissão de promover esta audiência pública, contribuindo para divulgar o Plano Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH3) e colocando em debate os diferentes e controversos pontos de vista sobre alguns dos mais cruciais aspectos do Plano.
A nós mulheres, interessa-nos a totalidade deste Plano e concordamos com todos os seus eixos orientadores: a interação democrática entre Estado e sociedade civil; a promoção dos Direitos Humanos como instrumento transversal das políticas públicas.
Interessa-nos a efetivação dos direitos civis e políticos e também a efetivação dos direitos sociais, econômicos, culturais.
Interessa-nos em especial a diretriz de valorização da pessoa humana como sujeito central do processo de desenvolvimento, o direito à cidade, o direito à terra, o direito à comunicação, o direito à auto-organização. Interessa-nos o direito à preservação da memória, à verdade histórica e a construção pública da verdade. Reafirmamos, pois, que o PNDH3 deve ser mantido em sua íntegra, tendo em vista os compromissos deste governo com a democracia participativa.
Contudo, por força do debate colocado na sociedade, decorrente da reação conservadora ao Plano, a proposição da descriminalização do aborto será nosso objeto de atenção nesta audiência.
Como tema polêmico, a questão do aborto exige de todos/as nós a disposição para um debate franco, sem hipocrisias, com base em informações corretas e na visão ampla de direitos humanos. Dada a infinidade de falsas informações, mitificações, veleidades e acusações estapafúrdias sobre esta prática e sobre quem defende a descriminalização do aborto, faz-se necessário que deixemos bem precisos os termos desta proposição, de modo que possa visibilizar porque descriminalizar o aborto é uma questão de direitos humanos.
Em primeiro lugar, quando falamos de aborto, falamos da interrupção da gestação nos termos da Organização Mundial de Saúde - OMS, ou seja, antes do período perinatal, 22 semanas completas (154 dias). Para além deste tempo, estaremos falando de parto. É importante ter esta informação em mente, pois muitas vezes acusam - sobretudo integrantes do movimento feminista, mas também todas as pessoas de diferentes movimentos e setores da sociedade brasileira que defendem este direito -, de apologia ao crime. Descriminalizar o aborto corresponde portanto dizer que o Estado brasileiro não punirá a prática de interrupção da gravidez até a 22ª semana de gestação. Legalizar o aborto vai além. Corresponde dizer que o Estado brasileiro deve assegurar os serviços necessários para concretizar este direito a todas as mulheres que assim decidirem e sem qualquer discriminação de classe, renda, cor, escolaridade.
Ao indicar a descriminalização do aborto, o PNDH 3 está em sintonia com o que foi aprovado por significativa representação da sociedade civil brasileira em Conferências de Políticas nos anos recentes, espaços de participação política criados a partir da Constituição de 1988 que precisam ser cada vez mais reconhecidos, legitimados e valorizados se queremos ampliar o acesso a direitos no Brasil. Esta indicação do PNDH 3, resultante destes processos, apresenta-se como fruto da luta das mulheres pelo aprofundamento do processo democrático em nosso país, e do compromisso, por parte do Governo Federal, de efetivar, por meio do Plano, compromissos assumidos pelo Estado brasileiro em Conferências da ONU desde os anos 1990.
Em segundo lugar, é preciso reconhecer que criminalizar o aborto é criminalizar as mulheres. A maioria das mulheres que abortam no Brasil de hoje são mulheres jovens, entre 23 e 29 anos, com vida sexual ativa, casadas civilmente ou vivendo em relação estável com um homem, que têm um ou dois filhos, que estão usando método de contracepção e muitas vezes decidem pelo aborto em acordo com o parceiro (pesquisa MS-UnB, 2009). Certamente a gravidez ocorreu por falha do método de contracepção; provavelmente ocorreu em um momento inadequado para os planos da mulher, do casal ou da família. Certamente a mulher e seu parceiro, decidiram-se pelo aborto após longa avaliação do que seria melhor para a família naquele momento. Estas mulheres são criminosas? Devem ser presas?
Mas nem todo aborto ocorre nestas condições, muitos são decorrentes de relações sexuais impostas e violentas. Uma mulher que engravidou por força de um estupro deve ser obrigada a ser mãe? Crianças até 14 anos grávidas são crianças estupradas, violentadas, este é o consenso internacional. A estas deve ser impingido o sofrimento físico e emocional de seguir com uma gravidez que não desejam? E que muitas vezes sequer compreendem?
Quando o Estado criminaliza o aborto, induz a todo tipo de práticas discriminatórias e violentas contra as mulheres: delação, humilhação, maus tratos em serviços de saúde, prisão,isolamento social da família e dos filhos; sofrimento físico, psíquico e emocional. Em situação de ilegalidade o abortamento é muito mais tardio, e portanto mais difícil, em todos os sentidos.
O impacto da ilegalidade do aborto na saúde das mulheres e nos serviços de saúde está hoje fartamente documentado (ver http://ipas.org.br). Em alguns estados, a quase totalidade de mulheres mortas por decorrência de não atendimento adequado em situação de abortamento é de mulheres negras, grupo populacional que majoritariamente recorre a serviços públicos.
Estas mortes são responsabilidade do Estado, assim como a violação ao direito a atendimento digno: mulheres são algemadas nas camas de hospitais, mulheres são deixadas para ser atendidas por último, nega-se anestesia e tratamento humanizado. E, lembramos, muitas mortes são decorrências destas práticas, ou seriam execuções não judiciais?
Quem possui o poder sobre o corpo feminino: o Estado, as autoridades religiosas, as corporações médicas, os maridos, pais, ou as próprias mulheres? O projeto da maternidade deve ser imposto a uma mulher? Ou as mulheres têm direito a ter projetos de vida? Temos o direito de fazer contracepção para evitar filhos? Usar camisinha? Tomar pílulas? Pode uma mulher ser impedida de ser mãe? Pode uma mulher ser obrigada a ser mãe?
Inscrever o aborto no código penal não impediu nem impedirá sua prática, que se impõe em determinados contextos da vida de uma mulher. Criminalizar as mulheres pela prática do aborto é negar às mulheres o direito à auto-determinação sobre suas próprias vidas. Falacioso é o discurso de defesa da vida, que mais valoriza a vida em gestação em detrimento do direito de viver para as mulheres que geram vidas.
Por tudo isto, compreendemos a descriminalização do aborto como questão de direitos humanos e consideramos a autonomia das mulheres uma premissa para efetivar os direitos humanos das mulheres. Saudamos o PNDH3 e nos manteremos firme em aliança com os movimentos sociais engajados na defesa do Plano em sua integralidade, afirmando a legitimidade de sua apresentação pelo Governo Lula.
(*) Silvia Camurça, integrante da Articulação de Mulheres Brasileiras, das Jornadas Brasileiras pelo Aborto Legal e Seguro e da Frente Nacional contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto, neste ato representando o movimento de mulheres.