Da série Memórias: Serra sem propaganda não existe

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Reproduzo artigo do Jornal da Ciência da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência)

"Se algum marqueteiro concluisse que a adesão ao canibalismo poderia, talvez, angariar alguns votos, o ministro Jose' Serra colocaria imediatamente no quintal de sua casa alguns missionários a engordar." (Folha de SP, 10/1)

JC e-mail 1950, de 10 de Janeiro de 2002.

Genericos, antraz e propaganda, artigo de Rogerio Cezar de Cerqueira Leite: "Precos reduzidos dos genéricos nao foram suficientes para ampliar o acesso dos mais carentes aos medicamentos"

O autor e' professor emerito da Unicamp e membro do Conselho Editorial da "Folha de SP". Artigo publicado na "Folha de SP":

Nasceu o poeta-guerreiro na vila propiciamente denominada Freixo de Espada-a-Cinta, distrito de Braganca, em Tras-os-Montes, Portugal. Unamuno o considerava "o maior dentre os poetas portugueses da atualidade e um dos maiores do mundo".

Abilio Manuel de Guerra Junqueiro elegeu como inimigos a burguesia corrupta e o clero reacionario e ganancioso que parasitavam o Estado portugues. Um dos demonios que procurou sempre exorcizar em sua longa vida de lutas pela justica e pela verdade foi o uso demagogico da tragedia alheia.

"No meio de uma feira, uns poucos de palhacos/ andavam a mostrar, em cima de um jumento,/ um aborto infeliz, sem maos, sem pes, sem bracos,/ aborto que lhes dava um grande rendimento./ (...) E eu ao ver esse quadro, apostolos romanos./ Eu lembrei-me de voz, funambulos da cruz/ que andais pelo universo ha' mil e tantos anos,/ exibindo, explorando o corpo de Jesus."

O ministro Jose' Serra, da Saude, no dia 8 de dezembro ultimo, com meio quilo de maquiagem, em cadeia nacional de TV, materia paga com dinheiro publico, relatou, em requintada peca de auto-adulacao, seu vitorioso sucesso na guerra santa que teria lancado ao poderoso cartel das empresas multinacionais do setor farmaceutico para reduzir precos de alguns componentes do coquetel anti-Aids.

Em artigo publicado nesta "Folha de SP" em 13 de dezembro, critiquei o uso abusivo de propaganda com finalidade eleicoeira, baseada em distorcoes crassas da verdade. Minha indignacao decorria, em primeiro lugar, da mentira deslavada referente ao numero de genericos disponiveis.

Em segundo, da supervalorizacao da recuperacao de uma salvaguarda tradicional, da qual, vergonhosamente, esta mesma administracao federal tinha pouco antes abdicado por simples sabugismo.

E, em terceiro, da ostensiva prioridade dada ao dispendioso programa de apoio ao portador de HIV em detrimento de outras endemias mais extensivas, porem nao tao eficientes para finalidades eleicoeiras.

Como que por mera coincidencia, o economista Gesner de Oliveira, apenas dois dias apos a publicacao do artigo acima mencionado, fez, nesta mesma "Folha de SP", uma apologia glorificante do programa de genericos do Ministerio de Saude.

Disse ele: "Os numeros de laboratorio, farmacos e apresentacoes passaram, respectivamente de 4, 11 e 26, em fevereiro, para 29, 142 e 1.165, em agosto de 2001". Ou seja, em seis meses, o numero de fabricantes cresceu 600% e o numero de farmacos cresceu de 11 para 142, um aumento de 1.300% . Caspite! Um milagre digno do superministro Serra. Mas como conciliar esses numeros com o fato de que, no final do ano passado, ja' havia cerca de 70 farmacos na praca?

Com seus numeros, entretanto, o economista Oliveira confirma - involuntariamente por certo - que o Ministerio da Saude mente ao mencionar 550 genericos disponiveis. Seriam eles apenas 149, ainda de acordo com dados do economista.

Outro item interessante da analise do professor Oliveira e' que ele parece acreditar que "a chegada de grandes produtores mundiais de genericos" e' compativel com "um estimulo para as empresas nacionais lancarem novos produtos". De fato os empresarios brasileiros sao tao ousados que adoram se aventurar em mercados ja' ocupados por "grandes produtores mundiais".

Mais uma conclusao extravagante de Gesner de Oliveira, principalmente se levarmos em conta que foi ele presidente do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Economica), foi a de que a producao de genericos poderia "viabilizar, em termos de escala, a producao de farmoquimicos no pais".

Ora, so' haveria mudanca de escala se o consumo de medicamentos tivesse aumentado.

A triste noticia, entretanto, e' que isso nao ocorreu. Os precos reduzidos dos genericos nao foram suficientes para ampliar o acesso de camadas mais carentes aos medicamentos.

Genericos substituiram seus medicamentos de referencia, apenas isso. Alem do mais, a dependencia nacional em relacao a farmacos nao e' uma questao de escala.

Paises com mercados internos menores do que o do Brasil, como Hungria, Espanha, Coreia do Sul etc., tem expressivas producoes, sendo, inclusive, fornecedores para o Brasil.

A principal razao para a dependencia nacional nesse setor e' o fato de que a importacao de farmacos e' um eficiente mecanismo de transferencia de lucros, sem pagamento de impostos, para a industria multinacional, a qual ocupa 85% do mercado brasileiro de medicamentos.

A mais melancolica das conclusoes sobre o programa de genericos, omitida na analise do professor Gesner de Oliveira, e' a de que a mais importante das consequencias esperadas, o aumento do consumo devido a ampliacao do acesso aos medicamentos para as camadas carentes da populacao, nao ocorreu.

Esse e', portanto, um projeto promissor, mas nao amadurecido. Ainda nao atingiu seus objetivos maiores. Usa-lo eleicoeiramente e' uma farsa, principalmente se para isso o ministerio precisa mentir.

Talvez a ilustracao mais manifesta de exploracao impudente de episodios fortuitos pelo ministro Jose' Serra com fins eleicoeiros nao tenha sido relacionada as lorotas sobre o programa de genericos, a desinformacao em torno da recuperacao de uma salvaguarda patentaria ou ainda a tragedia dos portadores do HIV, mas a seu envolvimento pessoal com a descoberta de um po' branco em um aviao da Lufthansa.

Afirmou ele, de pes juntos, que o Ministerio da Saude estava preparado para enfrentar o antraz do terrorismo internacional. Os EUA ate' agora nada conseguiram. Rivalizou assim com Bush em tempo de TV. Que delicia! Mas esse momento de gloria teve um fim melancolico.

Seguraram o quanto puderam, ate' que, naquela sorumbatica coletiva, ao lado do ministro, quase em lagrimas, o presidente da Fiocruz anunciou que o leite em po' Nestle' encontrado na aeronave alema nao era, definitivamente, o malfazejo antraz. Inconformado, o ministro reagiu.

"E' de 98% a chance de nao ser". Talvez pensasse que os restantes 2% lhe assegurassem ainda uma beirada no noticiario do dia seguinte. Esse comportamento, reiterado a cada oportunidade, nos induz, irresistivelmente, a parodiar o grande H.L. Mencken.

Se algum marqueteiro concluisse que a adesão ao canibalismo poderia, talvez, angariar alguns votos, o ministro Jose' Serra colocaria imediatamente no quintal de sua casa alguns missionários a engordar. (Folha de SP, 10/1)