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Serra fez de tudo para se dizer amigo de Maria da Conceição Tavares.... Ela não é amiga de Serra, mas o conhece bem e vota em Dilma.
Entrevista a Maria da Conceição Tavares: “Lula é um génio do povo” Por: Alexandra Lucas Coelho, no Rio de Janeiro em O Público 24.10.2010Amiga de Dilma e Serra, a economista portuguesa Maria da Conceição Tavares, figura nacional no Brasil, vota Dilma. E explica porque acha que Lula é um líder sem par.
Pedro Vilela/AFPAo longo de décadas, Maria da Conceição Tavares formou gerações de economistas e líderes políticos, incluindo LulaMaria da Conceição Tavares é daquelas figuras “maiores que a vida”. Aos 80 anos, a fumar ininterruptamente na sua casa do bairro carioca Cosme Velho, tem algo de Indira Gandhi ou Churchill. Voz e riso de trovão, olhar agudo, resposta incisiva. Respeitada em todo o espectro político como economista e pensadora, é uma das grandes conselheiras do PT. Nunca quis ser ministra porque diz tudo o que pensa. Portuguesa, nascida em Anadia, crescida em Lisboa, filha de um anarquista que alojava refugiados da Guerra Civil de Espanha, veio casada e grávida para o Brasil, aos 21 anos, por causa de Salazar. Desde então, ao longo de 60 anos, formou gerações de economistas e líderes políticos, incluindo Lula. A senhora deve ser a única pessoa no Brasil que consegue juntar no aniversário dos seus 80 anos…. Os dois candidatos à presidência da República! [ri-se] … Dilma Rousseff e José Serra. Mas o clima estava muito bom. Eles nunca se trataram mal, nem nada. Eram pessoas civilizadas, que se tratavam bem. A campanha é que despertou essa trapalhada. A noite [do aniversário, 24 de Abril] correu perfeita. Nem se discutiu política. Foi uma festa. Eles sempre tiveram boa relação? Não que sejam amigos pessoais, como eu sou amiga dos dois. Mas sempre tiveram boa relação. O Serra era um sujeito civilizado. Não sei o que deu na cabeça dele agora. Conhece-o muito bem… Desde 1968. … se tivesse de explicar quem é José Serra, o que diria? Um bom economista. Ambos éramos do PMDB, a frente democrática contra a ditadura. E ele saiu para fundar, com o [Mário] Covas e o Fernando Henrique [Cardoso], o PSDB, uma espécie de ala esquerda. Muita gente não acompanhou isso. Eu, por exemplo, não fui porque não faço muita fé no Fernando Henrique, que sempre foi meio dúbio, trapalhão. O Covas é que era o homem importante. Morreu. E aí… A partir do momento em que Fernando Henrique foi para o poder, o Serra manteve a posição dele como economista contra a política neoliberal. Porque é que acha o Fernando Henrique “meio dúbio”? Diz uma coisa para agradar a uns e outra para agradar a outros. Não fazia política, mas era um político na academia. E o Serra não, sempre foi muito “straight”, muito direito. Confiaria mais no Serra que no Fernando Henrique? Sem dúvida [ri]. E o primeiro governo [de Fernando Henrique] mostrou isso. Porque aí o Serra foi ministro de Planejamento contra a política neo-liberal do Fernando Henrique. Depois foi um bom ministro da saúde. Não havia nada nele que demonstrasse que ia ter uma mudança assim tão brusca. Mesmo quando foi candidato contra o Lula foi uma campanha normal. Ele sempre respeitou o Lula. Mas acha que Serra mudou? Mudou. Por razões de interesse político. Como é que essa mudança se manifesta? Na arrogância, na agressão. Ele não era assim. Mas na segunda volta quem passou ao ataque foi Dilma. Mas não foi ataque pessoal, xingando ele. Foi atacando o governo anterior [de Fernando Henrique]. E ele não se defendeu. Depois [a campanha] foi piorando. E agora piorou de vez. Como vê o incidente em que Serra acusou o PT de ser nazi, ao agredirem-no com um rolo de papel? Ah, são jovens na rua. Mesmo que sejam pêtistas não tem a ver com o partido em geral. Essa mania de chamar um partido de nazi, acho de maluco, num país democrático como é hoje o Brasil. A gente está extremando o argumento. O Serra está muito agressivo. É verdade que essa deve ser a última oportunidade, mas parece que lhe bateu o desespero. Mas não acha que Dilma mudou de atitude também, ficou mais agressiva? Claro. Mas é para responder. Defender a honra dela. Ele diz que ela é mentirosa, que disse isto e depois aquilo. Diz que ela abriga a corrupção, que é dela a culpa da Erenice [Guerra, ex-braço direito de Dilma, acusada de corrupção], que todos os problemas do Brasil são culpa dela. Ela está mais agressiva no tom, inclusive mais assertiva. Mas não está insultando, dizendo que ele é ladrão. De qualquer maneira, [a campanha] degringolou. Passou a ser um debate agressivo e vazio. Conheceu Dilma nos anos 80, sua aluna na Unicamp. Como a pode apresentar? É uma moça que sempre fez política, como o Serra. Fez política nos partidos radicais nos anos 70, ficou presa muitos anos, teve um comportamento fantástico na prisão, é uma mulher de muita coragem, de nervo. Ela não se desmorona à toa. Em 80 veio para Campinas, para o doutoramento. Era brilhante. Brilhantes, eles são os dois. Serra e Dilma? É. Ambos são bons economistas. Isso é que irrita. Podiam estar falando de coisas importantes para o Brasil. Portanto, em termos de economia, não fica preocupada com nenhum dos dois? Não, não fico. Quero dizer, com o Serra fico, em termos de política. Porque ele virou muito conservador e é frontalmente contra a política externa do Brasil, essa política de autonomia. Ele não é a favor das relações Sul-Sul. Preferia que a gente mantivesse a relação Norte-Sul, mais estreita com os Estados Unidos, o que acho um erro. E ele é muito fiscalista. Tanto, que o que está dizendo é contraditório. É a favor do corte do gasto público, mas diz que vai dar não sei quantos mil de salário mínimo, e para os aposentados. Está fazendo promessas demagógicas, o que não é nada o estilo dele. Existe a ideia de que a Dilma é uma construção do Lula, alguém que não tem personalidade própria. Isso é uma bobagem. O que ela não tem é o conhecimento político do Lula. Mas foi ministra de Minas e Energias, um sector pesado, em plena crise de energia eléctrica — herança da política boba do Fernando Henrique —, e foi Chefe da Casa Civil, uma casa política. E está com ele [Lula] todos os dias. Tem aprendido com ele tudo o que há para aprender sobre o Brasil. É evidente que sem ele não teria chance. O Serra já foi candidato a várias coisas, ela não. Então, o facto de ser apoiada pelo Lula ajuda. Não bastava o PT. O PT não tem peso suficiente para fazê-la ganhar. Quem tem é o Lula, uma figura política como nunca ocorreu no país. Para dizer a verdade, pouco ocorreu no mundo. No vídeo em que apoia à Dilma diz: não sigam a propaganda das grandes empresas, o Brasil tem de fazer as pazes com o povo, não pode ficar só votando para os 10 ou 20 por cento de cima, e a mulher do povo é a Dilma. Acha que existem dois Brasis, essa faixa de cima que é anti-Lula e o Brasil do povo? Acho. Tranquilamente. E isso está a manifestar-se de novo nesta eleição? De novo. Agora, tem a classe média, que vai para cá ou para lá, conforme a conjuntura. A classe média que ascendeu nos últimos anos? A que ascendeu foi a média-baixa. A média-alta, não. E essa é que tem muita raiva do Lula e não vai votar na Dilma. Nessa faixa média alta, o Lula é frequentemente descrito como um ignorante, ou um populista. Primeiro, não é populista porque é do povo. Populista seria um cara da elite que estivesse manipulando o povo. Ele ascendeu do povo, e foi sendo feito pelo povo. Depois, ignorante, coisa nenhuma. O Lula sabe mais do Brasil do que ninguém. E sabe mais de economia aplicada, prática, do que ninguém. Já é candidato desde 1989. Então, na primeira derrota fez o Instituto de Cidadania, uma espécie de ONG, e convidava todos os intelectuais. Eu conhecia-o de vista, mas aí passei a ser assessora dele. Eu, uma série de economistas progressistas, filósofos, sociólogos. Era uma espécie de academia informal? Claro. De maneira que ele fez uma “universidade” que durou de 1989 a 2002. Como “aluno”, como era? Ah, brilhante, brilhante. Tem uma memória prodigiosa. E quando havia discussão académica e ele percebia que as questões estavam resvalando, não deixava. Ele vai no gume. Tem um sentido de oportunidade muito afiado, uma mente muito lógica. Isso é que é impressionante. Tem um coração popular, uma emoção popular, mas a cabeça dele é totalmente lógica. É dos homens mais inteligentes que conheci. Se não o mais. Diria que o Lula é talvez o homem mais inteligente que conheceu? Sem dúvida. E não apenas politicamente. É uma inteligência nata. É um génio do povo. Nós tivemos um génio do povo. Se não, não teria chegado lá. Você acha que alguém vindo de onde ele veio, com as dificuldades que teve, chega a presidente? Não. Ele é um génio do povo, mesmo, e impressiona qualquer um. A senhora tem uma frase que é: “O Lula é o maior intelectual orgânico do Brasil.” Os intelectuais como eu são clássicos. E ele é orgânico. Interpreta e representa organicamente o povo brasileiro. Não tem nada a ver com um Hugo Chávez? Não, imagina! O Chávez é de origem militar. Ao Chávez é que se podia chamar populista, embora eu o ache mais uma espécie de caudilho ilustrado. E o Lula não tem nada de caudilho [líder carismático e autoritário]? Não, que caudilho! Ele jamais faz apelos carismáticos. Ele fala com o povo, ou com quem quer que seja, de igual para igual. Faz piada, faz humor. É um deles? É um deles. Mas também quando se encontra com a classe média é como um de nós. Não tem complexo de inferioridade, nem de superioridade. Não tem ressentimento, é isso? De nenhuma espécie. E não gosta que fiquem elogiando ele de mais. É muito lúcido. Como a lucidez é uma característica da inteligência analítica, ele tem uma inteligência analítica poderosa. E como é do povo, eu digo que é orgânico. A senhora escreveu que ele foi quem mais avançou na “republicanização do Brasil”. No sentido de democratização? É. Porque está dando voz ao povo. A preocupação dele é tornar cidadãos os que estão à margem. E não com palavras, com factos. Indo até eles, dando-lhes direitos, com a preocupação de que as políticas sociais sejam para incorporação. O Lula, entre as derrotas, fez várias viagens ao Brasil inteiro, chamadas Caravanas da Cidadania. A palavra que escolhe sempre é cidadania. Por isso digo que é republicanização. O que ele quer é que todos os brasileiros tenham cidadania, possam-se expressar, ter direitos. Quer acabar com os dois Brasis, em resumo. Quer fazer disto uma nação. Quando chegou ao Brasil, o pensamento do antropólogo Darcy Ribeiro foi importante para si, a ideia de construir uma democracia multiracial nos trópicos. O Brasil está mais perto disso? Está. Nunca julguei que chegasse. Mas agora acho que a democracia está consolidada no Brasil. A coisa multiracial está avançando, porque os direitos dos negros, dos índios, estão sendo reconhecidos. E os dois Brasis estão terminando. Essa nossa vergonha. Lula é acusado de tentações autoritárias, de se apoderar da máquina do Estado, de se enfurecer com a imprensa. Há toda esta tensão. Ele ironiza, ridiculariza, o que é outra coisa, porque é muito do estilo popular, rir dos defeitos do adversário. Mas não há uma tentação autoritária? Quando se fala do inchaço da máquina do Estado… Que inchaço da máquina do Estado, coisa nenhuma. Nós desmontámos o Estado do Fernando Henrique, que fez uma política neo-liberal durante oito anos, nunca fez concurso público e deixou que todo o Estado ficasse terciarizado, com gente que trabalhava sem contrato, sem carteira assinada. Isso é que inchaço. O Lula faz concurso público, a terciarização está diminuindo, está aumentando o pessoal com carteira assinada. Enfim, estão-se reconhecendo formalmente os direitos trabalhistas. E isto é autoritarismo? É possível que em alguns cargos de confiança o Lula tenha errado, mas também o Fernando Henrique errou, botou vários em cargos de confiança que nas privatizações se revelaram pessoas sem escrúpulos. Errar em cargo de confiança acontece em qualquer governo. Agora, no Estado, não, porque o Lula fez concurso. Foi por mérito, não para inchar a máquina. A corrupção foi o problema que prejudicou mais o governo Lula? Foi o que prejudicou a imagem. Não propriamente dele, que tem 80 por cento de aprovação. Prejudicou os candidatos dele, como está prejudicando Dilma, prejudicou a imagem do governo. Mas ele tirou, por exemplo, o José Dirceu [protagonista do escândalo Mensalão, em que o PT pagava a deputados uma mesada], de quem era amigo antiquíssimo. Não há nepotismo. Todos os casos de corrupção declarada, ou objecto de inquérito público, foram demitidos. Por exemplo, com o Berlusconi, não há dúvida nenhuma de que aquilo é um governo corrupto, porque ele é um corrupto. Agora, ninguém acusou o Lula directamente. Acusaram-no de ter fechado os olhos, mas ele não fechou olho nenhum. Podia ter mantido o José Dirceu, e dizer que era culpa de fulaninho e sicraninho, enfim daqueles que fizeram lá os “mal-feitos”. Como podia ter mantido a Erenice, não tinha processo contra ela. Agora, tem pêtistas que não gostaram que o PT não expulsasse esses quadros. Eu fazia parte da tendência chamada refundação. Achava que devíamos dar uma refundada e ter um código de ética mais pesado. O argumento dos outros era que seria injusto expulsar enquanto não ficasse provada a culpa. Obviamente, não tenho a menor simpatia pelos quadros que foram acusados. Quanto mais não seja por ineficácia política. De um homem da importância de José Dirceu, que foi presidente do partido anos, e deixa o tesoureiro nomeado por ele fazer o que fez, dele é que se pode dizer que como estava preocupado com o poder esqueceu essa parte [ter mão na corrupção]. Ele pode ser acusado disso. O Lula não. Não tinha nada que ver com a máquina do partido. Lançou a Dilma, e depois é que o partido referendou. O Lula sempre teve muita autonomia em relação ao partido. Tanto que o pessoal fala que há o pêtismo e o lulismo. Acha que há? Há mesmo. Porque o Lula é maior que o partido. Acha que essa malta pobre que vota nele é pêtista? Coisa nenhuma. São pentecostais, a maior parte não tem partido. Acreditam no Lula. O lulismo é um fenómeno de massas. O pêtismo é um fenómeno orgânico, de um partido de esquerda que foi andando para uma espécie de centro-esquerda, social-democrata, que hoje já não existe na Europa, porque a Europa está decadente. A Europa está decadente? Ah, está. Puxa vida. Bota decadência, não é? Até nós. Até nós? Nós, portugueses [risos]. Seguimos o exemplo dos outros. O único país que seguiu menos esse exemplo foi a Suécia, que teve um período neo-liberal muito curto. Nós virámos neo-liberais. Não somos social-democratas faz horas. Nem nós, nem a Europa inteira continental. Nem a Inglaterra, nem nada. O Lula é um social-democrata? É. Vamos ver: social-democrata é quando você representa organicamente os trabalhadores. Ora, se há social-democrata é o Lula. Jamais foi a favor da luta armada, jamais. Sempre ficava meio chateado entre a discussão dos intelectuais e dos que vinham da igreja. O PT tem três origens: a sindical, que é a dele, a da igreja, católica, e a dos intelectuais revolucionários. Perdiam um tempo danado a discutir e a vontade dele era mandar os padres rezar e os intelectuais para a academia, e não chatearem ele [ri]. Isso ele disse uma vez para mim, rindo: “Você não tem ideia do que era!” Quando eu entrei, [o PT] já estava manso. Nunca quis ser ministra? Não. Não tenho temperamento para ser executiva. Fui deputada porque me pediram. O Lula nunca a convidou? Não. Ele conhece-me, sabe que eu sou pêlo no vento. Eu sou muito mais agressiva do que a Dilma, muito mais. Ela consegue disfarçar a raiva dela, eu não. Quando fico com raiva, fico. Digo na cara das pessoas o que acho. Eu não seria uma boa ministra. Sou uma boa assessora. Porque diz o que pensa. Isso. O que é importante. Alguém que não fica puxando o saco do chefe. Eu não puxo saco de ninguém. Várias vezes disse ao Lula coisas com que ele não concordava. Por exemplo? Por exemplo, quando ele fez a aliança com o Garotinho [ex-governador do Rio, condenado por corrupção]. Eu não votei. Já agora, Collor de Melo e Sarney [ex-presidentes envolvidos em escândalos, que também fazem parte da base de apoio de Lula]. Sente-se confortável com estas alianças? Eu não sigo as instruções. Se a aliança for com alguém que considero indecoroso, não voto. É o caso de Sarney ou Collor? Collor, sim. Sarney, nem tanto. O Sarney que conheço é o da transição. Na primeira parte do governo fez o que pôde. Depois, degringolou. E nunca mais foi candidato a nada. Acho injusto confundir o Sarney com o Collor. O Collor é uma coisa desqualificada. Há quem critique programas como o Bolsa Família como a criação de uma rede de dependência do governo, que pode ter o efeito contrário justamente a essa autonomia dos cidadãos. O que acha disto? Acho que é mentira. O Lula tirou 28 milhões da pobreza. Esses não são mais dependentes da Bolsa Família, porque a Bolsa Família é para os pobres. Esses 28 milhões entraram no mercado de trabalho, são assalariados, ou têm os seus pequenos negócios. O que o Lula fez foi proteger os pobres, não deixar os caras morrer de fome. Mas uma vez que ficaram acima do salário mínimo, não. Ninguém que ganhe acima do salário mínimo tem Bolsa Família. Pode ter outras. Como economista, como vê estes programas? Acho que é o correcto. Ao tirar da pobreza, e meter no mercado de trabalho vinte e tantos milhões, você está consolidando o mercado interno. Por isso é que a crise internacional não nos atingiu duramente. Por isso, e porque o sector externo estava bem. Tínhamos pago a dívida externa. E Lula investiu no consumo… É, deu crédito, além de ter dado emprego. Deu muito emprego. Mais do que prometeu. Investiu no mercado interno e deu financiamento para aquisição de bens necessários, tipo geladeira [frigorífico]. As pessoas dizem: “Ah, fica financiando geladeira…” Mas neste país quente querem que não se financie geladeira? E as pessoas comem o quê? Carne podre? Evidentemente que o que ele fez está correcto. Passámos de uma taxa de crédito de 20 e tantos por cento para 40 e tantos. O que é bom. Não é como nos países ricos, que era 120, 130, o que deu na catástrofe que deu [crise de 2008]. Aqui não tem alavancagem do crédito. Não tem incumprimento alto, inclusive, ou seja, não pagar a prestação que deve. Os devedores pagam, e quem mais paga são os pobres, exactamente. Essa é outra ideia, que pobre não paga. É mentira. Quem não paga é a classe média-alta, que usa cartão de crédito, cheque especial, vai-se endividando e endividando. O povo não faz isso. Nem tem cartão de crédito nem cheque especial. Tem banco, isso sim. Foi uma coisa importante. O Lula não fez só o Bolsa Família. Fez O Luz para Todos, fez a Bancarização, que é você ter direito, mesmo sem carteira de trabalho, a poder ir ao banco e ter crédito. Essas coisas que implicam integrar o cidadão na sociedade. O que é está em jogo nesta eleição, de facto? É uma eleição importante? É importante. É a continuidade deste esforço em todos os sentidos. Desde a política externa autónoma, que é fundamental. As pessoas não se dão conta, porque aqui ninguém sabe nada de política externa, então a classe média nem fala no assunto. Uma das críticas maiores ao governo Lula é o facto dele falar no tom em que fala com Chávez, com o regime cubano, com Ahmadinejad. Isso é tudo uma bobagem, porque tem de falar com todo o mundo. Lula também fala, e é amigo, do presidente dos Estados Unidos. Só que não se submete. Mas a questão não é falar, é… É falar sim, porque ele não fez nada que não fosse de acordo com as regras da nossa constituição e as regras internacionais. A questão que algumas pessoas colocam é se faz sentido um presidente como Lula ir abraçar os irmãos Castro num momento em que estão dissidentes a morrer e a serem mortos. Faz sentido como faz sentido ir abraçar qualquer um. Então eu pergunto: faz sentido o governo dos Estados Unidos ter sustentado com dinheiro, com apoio da CIA, todos os golpes de Estado da América Latina?! Isso ninguém critica! Aposto que essa gente da classe média nunca falou nos golpes latino-americanos financiados pelos Estados Unidos e pela CIA! Certo. Mas a pergunta… Então?! Nós não estamos financiando golpe de Estado! Só estamos indo a governos legítimos. Não estou falando democráticos, estou falando legítimos. Como alguém que acredita profundamente da democracia não a incomoda… Não me incomoda nada! O Oriente Médio não tem democracia nenhuma, e não terá tão cedo. Há tanta possibilidade de ter democracia no Irão, no Iraque, naquela república petroleira que sustenta tudo… A Arábia Saudita. Mas eu não estava a falar do Oriente Médio… Como não? Uma das críticas maiores foi ele ter falado com o Irão. Como não está falando no Oriente Médio, se foi aí que a imprensa espirrou? O Castro é periódico. Todo o mundo sabe que ele é amigo do Castro de Cuba. Mas estou a perguntar-lhe a si. Acho que ele tem todo o direito. Eu também não teria nenhum inconveniente se fosse a Cuba — não tenho nada que fazer lá, de momento, nem tive, no passado — em cumprimentar o velho Castro, imagina, que é uma figura histórica totalmente relevante. Agora de repente o Castro não tem importância nenhuma? Eu teria inconveniente era em cumprimentar o primeiro-ministro da Itália [Berlusconi], esse sim, que é um ladrão. No caso da Itália, não é só por causa da corrupção. É por causa do neo-fascismo, que Berlusconi promoveu, e de que é aliado. O que está acontecendo na Itália é gravíssimo, voltar o fascismo à Itália como partido legal. Mas se cumprimentasse Castro, provavelmente também lhe diria o que pensa, não? Sem dúvida nenhuma. Ia dizer: “Sei que agora não é você quem manda, é o Raul, mas porque é que não libera logo esses caras, e pára de ter uma praga em cima de você?” Eu diria. E ele diria: “Porque não, nhim-nhim-nhim, nhim-nhim-nhim, lá os argumentos dele. Digo sempre o que penso. Nos Estados Unidos também dizia, quando estava lá. A senhora acha que isso não teve custos políticos para Lula? Custos políticos não teve, porque as pessoas que dizem isso nunca votaram no Lula. Há pessoas que votaram nele e dizem isso. Não senhora. Não é pela política externa. Não é verdade. Podem ter-te dito que votaram, mas é mentira. A política externa [de Lula] não é uma crítica da esquerda. Ao contrário. Isso é uma crítica da direita. Concentrando-nos na América Latina, a minha questão era se faz sentido uma figura como o Lula, justamente pelo que transporta de inspiração, de exemplo… Faz todo o sentido! Não é uma política de autonomia? É! Cuba está ou não cercada pelo boicote económico americano? Está. Um dos problemas económicos deles é esse. Justamente. Uma palavra de Lula aí não teria força em relação à repressão política, dos prisioneiros? O Lula não se vai meter nas decisões de cada país. Vai lá para mostrar simpatia pelo facto de que eles estão sendo cercados. E deve ter falado [na questão dos presos políticos]. Porque ele disse-me que isso foi tocado. É? Mas amigavelmente. Não vai agora se meter na política dos outros. Chama-se política de não intervenção. Ninguém se intromete. Se fosse à Itália provavelmente também cumprimentaria o Berlusconi. Só que não foi, graças a Deus. Acho que é um dos poucos países onde não foi. Não deve ter sido por acaso. Foi à Alemanha, a França, e também não deve morrer de amores pela Merkel, ou por aquele francês, que é um autoritário de direita, o Sarkozy. E daí? Por acaso ele critica o Sarkozy em público, ou vai lá peruar sobre os direitos dos franceses? Isso não se usa. Isso não é diplomacia. Eu faria, mas o Lula é um estadista, representa o estado brasileiro. Outra coisa com que a direita não concorda é a política Sul-Sul, e é o caso do Serra, que hoje é um homem de direita. Acha que ele é um homem de direita? Hoje, virou. Porque o partido dele virou a direita possível. Dado que a direita clássica está encolhendo no Brasil, ele foi-se estendendo para a direita. Então o partido dele hoje, no máximo, pode-se chamar de centro-direita. Como, no máximo, o nosso pode ser chamado de centro-esquerda. Você tem o centro dominando o espectro ideológico. Ora vai para a esquerda, em certas eleições. Ora vai para a direita. MEMÓRIAS DE PORTUGAL Falemos um pouco do seu percurso antes de vir para o Brasil. O seu pai acolheu refugiados da Guerra Civil de Espanha. É verdade [ri]. Era anarquista, o meu velho. Nasci em Anadia mas vim com um mês para Lisboa. Então sou alfacinha. Estive em Sacavém, nas Avenidas Novas, perto lá da Igreja de Fátima… Avenida de Berna. Isso. Estive em vários lugares. O seu pai era comerciante. Era. E essa frase de que me lembro [dos refugiados] era quando estávamos num bairro popular, de maneira que não se notava tanto. Se enfiasse anarquistas em bairro de classe média tinha-se ferrado. O pessoal estava saindo, estavam perdendo a guerra, e Lisboa era um lugar de passagem de todo o pessoal que estava sendo perseguido, judeu, anarquista. E tinha sempre vários segmentos da população que ajudavam. Aí cresci no meio do debate. O meu tio era comunista e o meu pai anarquista. Então, você imagina, no caso da Catalunha, em que a briga entre anarquistas e comunistas foi feroz, como é que se discutia. Cresceu a ver esses refugiados em casa. Quanto tinha sete, oito anos. Quando terminou a guerra, foram à vida deles. Depois teve a II Guerra Mundial. E aí é que eu cresci, no sentido em que aos 12 anos caiu Paris. Foi uma tristeza geral. Me lembro de nós todos em torno da BBC, ouvindo a notícia, chorando. Depois a fronteira russa, a queda de Leninegrado, que foi uma brutalidade. E finalmente no dia D, a gente começou a se animar. A guerra terminou quando eu tinha 15 anos. E venho para o Brasil em 1954. Vim casada, grávida da minha filha mais velha e matemática. E veio porquê? Ah, porque aquilo ali não dava. Por razões políticas? Ah, sim. Não havia emprego para gente como nós, por causa da ficha política. Era comunista? Não. Dado que tinha um pai anarquista, uma mãe da esquerda católica e um tio comunista, eu era progressista, digamos. Naquela altura até era mais de uma esquerda católica. Tinha amigos comunistas, anarquistas. Aqui, quando cheguei, também tinha trotskistas, mas isso não me lembro em Portugal. Aqui tinha muito intelectual ilustre que era trotskista. Tinha vários salões intelectuais: o dos comunistas, o dos trotskistas, e o da esquerda católica. E eu frequentava os três, para variar. Era muito estimulante. Apesar de que, como morreu logo o Vargas, ficou um período meio brabo. Até me lembro de pensar: “Puxa, onde eu vim amarrar o meu cavalo. Fui em busca de democracia e pego um golpe pela cara.” Mas depois melhorou. E com JK [Juscelino Kubitschek] ficou aquela alegria. Aí, me naturalizei brasileira e fui fazer o curso de Economia. Já tinha 27 anos. Depois atravessou toda a ditadura brasileira. Menos um período de cinco anos, em que estive no Chile. Porque aqui estava muito difícil. Não se cruzou com Serra [que esteve exilado no Chile]? Claro que cruzei. Então é lá que se encontram. Claro. E foi lá que escrevemos o nosso artigo contra o “milagre económico” [brasileiro]. Depois eu voltei em 1973, fiz concurso para Campinas, e fiquei na ponte aérea Rio-Campinas. Dava parte das aulas lá e parte cá. Ajudei a formar o mestrado de Campinas, o doutoramento. Entrei pesado na vida académica. Foi bom ter feito matemática, porque o meu catedrático não tinha nenhuma noção de matemática. E foi assim que ele me indicou para auxiliar, depois fiz os concursos todos. Houve um momento em que passou a sentir-se brasileira? Um clique? Houve. O JK [Juscelino Kubitschek]. Trabalhei no Plano de Metas dele. Era uma tamanha alegria que você achava que o país estava indo para a frente. Paradoxalmente, eles não trataram da questão agrária, e também o salário mínimo não foi nenhuma maravilha, a partir de 1958 começou a cair, por causa da inflacção. A inflacção realmente é uma praga. Sou uma das poucas economistas de esquerda que é contra a inflacção. Os economistas de esquerda acham que a inflacção não faz diferença. Faz muita diferença. Para quem? Para os pobres. Para os ricos não faz diferença nenhuma. Os brasileiros ficaram traumatizados com a inflacção, não é? Foram décadas. É um país classicamente inflaccionário. Esta é a primeira vez que não. E isso começou, diga-se a verdade, no Fernando Henrique. O que é que acha que o Brasil lhe deu? Inicialmente, susto [ri]. Uma pessoa chegar aqui, mata-se o presidente e fica tudo imerso… Susto. E como aqui o pessoal é meio inconsciente, a esquerda, mesmo quando era ilegal, vivia batendo papo nos botequins. E eu dizia [sussurra]: “Escuta, aqui não tem PIDE?” “PIDE?” “Sim, polícia política.” “Ah, não sei, deve ter, mas a gente está aqui num bar.” “Ué, mas um bar é uma coisa aberta!” [risos] Eu ficava espantadíssima. Não tinha aquela clima português em que você olhava para a esquerda e para a direita até para ler um jornal. Então, essa foi a primeira coisa: relaxei mais. Em segundo lugar, a coisa da alegria, de ver uma civilização brotar, o que é muito bacana. Ver música, teatro… Culturalmente era muito rico. Aqui, essa parte, era liberal. Só na ditadura propriamente dita é que censuraram as manifestações culturais. Na ditadura, fiquei no Brasil de 1964 a 68, quando ainda tinha muita crítica. Em 68 é que eles endureceram. E por sorte eu fui [para o exílio] antes. Aí caiu gente para burro, intervieram nas universidades. Se eu tivesse aqui teria sido expulsa. Eu tava lá [Chile] e também foi uma alegria. Conheceu Salvador Allende? Conheci. Conheci todo o mundo. Até pedi uma licença — porque estava a fazer um doutoramento em Paris — e fui trabalhar com o governo. Eu e o Serra. Com o governo Allende? [Acena] Fomos os dois colegas no ministério da Economia. Como tinha de voltar para tomar posse na universidade, voltei em Março de 1973. E o golpe [de Pinochet] foi no Outono. Eu tinha deixado a minha filha e o meu filho, porque pretendia fazer outra licença. Mas aí vi que não dava, porque já tinha havido o diabo, trouxe o menino, e ela que tinha casado com um chileno ficou lá. Aí foi uma coisa muito angustiante. Depois quando ia para um seminário no México, prenderam-me no aeroporto aqui no Brasil e fiquei lá num desses aparelhos de repressão 48 horas. Assustador. Não teve tortura. Ameaça, ficar nua, fotografada de todos os lado, não poder comer, não poder beber, não poder fumar, e aquelas celas isoladas. Sempre fumou assim sem parar? Sempre, desde os 14 anos. Fumo dois maços. Claro, em entrevista fico nervosa e fumo mais [ri]. Então o Brasil me deu maturidade e uma experiência de vida rica. E Portugal para si é o quê? É remoto. Hoje não tenho mais nenhuma ligação íntima. Tenho uns primos vagos na Anadia. A Maria de Lourdes Pintasilgo, que era minha colega, morreu. Foi sua colega onde? No liceu Filipa de Lencastre, e depois No Instituto Superior Técnico, onde entrei com 16 anos. Estive com ela várias vezes, quando ela vinha aqui eu sempre a via. Essa era uma mulher fantástica. A verdade é que nós, as mulheres portuguesas, somos fantásticas. A coisa das Marias portuguesas é um facto. São mais lutadoras que os homens. Eu acho. Desde a Padeira de Aljubarrota para cá. No tempo do Salazar era uma apagada e vil tristeza. Agora, como eu tinha sido presa aqui na véspera da revolução dos cravos e me disseram que me cortavam a nacionalidade se eu saísse, fiquei com medo e não saí do Brasil [nos dois anos a seguir ao 25 de Abril]. Depois fui, e talvez tenha ido numa das últimas marchas com os cravos, com os capitães e o velho comuna, que acho que já morreu… Álvaro Cunhal.O Álvaro já morreu, não já? O velho Cunhal. Descemos a Avenida da Liberdade com os cravos na mão. Foi simpático. Mas não é um país estimulante como o Brasil. O Brasil é um país imenso e muito diversificado. Lá é muito pequenininho.