Direitos Humanos são indissociáveis dos direitos econômicos, sociais e ambientais. Garantir a dignidade da pessoa significa garantir respeito ao seu pertencimento étnico-racial, à sua cultura, ao seu gênero e orientação sexual, significa garantir alimentação, trabalho, educação, saúde, moradia digna e um planeta sustentável.
O Brasil é signatário de todos os tratados e declarações que dizem respeito à defesa dos Direitos Humanos e, infelizmente, a tortura ainda é praticada em nosso país, muitas vezes por policiais militares que desonram a corporação e mancham o nome de nosso país no mundo.
Uma nação que deseja ser desenvolvida e democrática não pode mais se contentar apenas com discursos e uma igualdade de direitos no papel, é preciso que todos os órgãos e instituições de modo transversal valorizem em suas práticas e políticas públicas os Direitos Humanos de modo indissociável.
Neste sentido Plano Nacional de Direitos Humanos III que segue a tradição dos dois outros planos nacionais Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH I), e o PNDH II, ao instituir a Comissão da Verdade, destinada a restabelecer a verdade dos fatos sobre o período ditatorial e a empreender a busca pela localização dos corpos de suas vítimas, vem atender uma reivindicação de décadas pela verdadeira democratização do país.
A violenta reação de comandantes militares e dos setores mais retrógrados da sociedade brasileira - da mídia corporativa aos ruralistas – é prova cabal da justeza das medidas propostas. O Brasil vivencia, atualmente, uma oportunidade histórica única para acertar as contas com seu passado ditatorial (como já o fizeram Argentina, Uruguai e Chile), passar a tratar com civilidade e respeito as vítimas de um Estado que, à revelia da lei, torturou e matou, e recuperar o respeito da comunidade internacional no que tange aos Direitos Humanos.
Como fica evidente para quem se dispor a ler o Plano, não se trata de revanchismo. Mesmo porque, como aponta Paulo Sérgio Pinheiro, membro da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, relator da ONU na área dos Direitos Humanos, ex-Secretário de Direitos Humanos do Governo FHC:
“O Brasil é o único [país em] que as Forças Armadas continuam tendo essa solidariedade com o passado. É evidente que as Forças Armadas de hoje não tem nada a ver com um bando de torturadores e militares e policiais que fizeram os desaparecimentos”.
O professor Sérgio Pinheiro durante toda esta semana deu entrevistas em vários órgãos de comunicação no Estadão, na CBN, na TV Brasil e em todas as entrevistas foi de uma coerência ímpar, afirmando que o processo de elaboração do PNDH III foi mais amplo e democrático do que o que ele próprio organizou durante o governo FHC. Em todas as entrevistas ele chama à razão seus colegas de partido, como o senador Arthur Virgílio, para que leiam o PNDH III e conclama os homens públicos e a sociedade civil para que possamos, enfim, discutir a tortura impetrada pelo Estado nos duros anos de chumbo e para que nosso país avance em cumprir o que acordamos com os demais países em todos os tratados e declarações internacionais na área de DH.
Como destaca Maurício Caleiro em seu blog, "os militares na ativa, se prezam a democracia, como gostam de alardear, deveriam estar entre os mais interessados em acertar as contas com um passado que continuará a os assombrar enquanto não for devidamente expurgado". Os políticos que fazem oposição à Lula, mas que alardeiam pertencer à social-democracia e cujas lideranças, inclusive, participaram de movimentos de resistência à ditadura militar, estão perdendo uma chance histórica de provar à nação que realmente têm compromisso com a democracia. Eles deveriam pararem de ignorar os principais intelectuais do seu próprio partido como andam ignorando os apelos do professor Paulo Sérgio Pinheiro.
Como informei em outro post acompanhei os debates ocorridos aqui em São Paulo durante todo o ano de 2009, que se iniciaram com o famigerado editorial da Folha sobre a “ditabranda’ e se desdobram em inúmeros eventos ocorridos na Universidade de São Paulo e outros espaços. E embora o governador Serra em 2000 tenha, numa frase infeliz, relativizado o que não se pode relativizar “Direitos Humanos para humanos direitos“, em 2009, foi o próprio governo do estado de SP que coordenou os debates regionais sobre a preparação para a Conferência Nacional dos DH.
Como aponta o professor Paulo Sérgio Pinheiro- uma das tarefas da Comissão da Verdade proposta seria requisitar os arquivos das Forças Armadas:
“Isso deve ser feito, não para julgar ninguém, porque nenhuma Comissão da Verdade faz isso, mas sim reconstituir o passado”(...) “Essa conversa de revanchismo é coisa de saudosistas da ditadura.”
Como forma de afirmar apoio coletivo ao necessário enfrentamento com os fantasmas do passado ditatorial brasileiro, o MariaFrô publica, de forma simultânea a uma rede de blogs, a entrevista abaixo reproduzida, com as representantes da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil, Suzana Lisbôa e Criméia Almeida.
"Estado é conivente com a tortura e os desaparecimentos durante a ditadura"
Desde a Lei da Anistia, os familiares dos mortos e desaparecidos políticos da ditadura militar lutam na justiça ou em qualquer instância possível para terem o direito de saber o que aconteceu com seus entes e receberem seus restos mortais para enterrar e seguir em frente. Ao conversar com as representantes da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos, Suzana Lisbôa e Criméia Almeida, a impressão é de uma luta infinita, difícil e dolorosa e de escassos resultados. Coube aos familiares dos desaparecidos – com seu luto inacabado – contar, além da história dessas pessoas que morreram sob condições brutais lutando contra a ditadura, essa parte ainda desconhecida de nossa história. Até hoje, apenas quatro corpos foram encontrados dos 176 desaparecidos e os governos que sucederam os militares vêm ignorando sistematicamente todos os pedidos e determinações – do Comitê de Direitos Humanos da ONU e da OEA - para abrir os arquivos secretos da ditadura e dar uma resposta concreta a essas famílias.
[caption id="attachment_1690" align="aligncenter" width="500" caption="MPF lembram seus desaparecidos."][/caption]
Neste momento, o Brasil está mergulhado na discussão sobre o terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos – PNDH III – decreto assinado pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva em dezembro passado, que prevê a criação, através de um projeto de lei ainda a ser encaminhado ao Congresso Nacional (portanto, sem nenhuma arbitrariedade inconstitucional, como querem fazer crer os detratores da lei na mídia corporativa) da Comissão da Verdade, destinada a investigar os crimes cometidos pelo Estado durante a repressão aos opositores da ditadura militar.
O PNDH III é o resultado de um longo e democrático processo de discussão – que incluiu a realização de diversas conferências ouvindo toda a sociedade e entidades representativas do setor – e negociação com todos os setores do governo. Os militares, liderados pelo ministro da Defesa, Nelson Jobim, descontentes com o acordo firmado por eles mesmos, criaram e vazaram uma crise governamental para tentar impedir a abertura dos arquivos secretos da ditadura, e uma possível punição aos torturadores – possibilidade que ainda dependerá de uma decisão do STF sobre o tema, caso os crimes de tortura venham a ser inventariados. Pedro Luiz Maia
Qual a principal luta da Comissão de Familiares dos Mortos e Desaparecidos Políticos?
[caption id="attachment_1691" align="aligncenter" width="156" caption="Suzana Lisbôa"][/caption]
Suzana Lisbôa - Nossa luta é para que o Estado brasileiro esclareça as circunstâncias das mortes dos desaparecidos políticos, onde e como morreram, entregue os restos mortais aos familiares e pela punição dos responsáveis pelas mortes e torturas durante a ditadura.
Por que, na opinião de vocês, o governo não abre os arquivos secretos da ditadura, se tem poder para isso?
Suzana Lisbôa- O governo manteve o sigilo eterno (*) quando poderia ter aberto os documentos. Foi uma opção política. Os crimes de direitos humanos não prescrevem e não podem ser mantidos sob sigilo, mas o Estado nega. O direito a informação é um direito constitucional. Nós temos o direito de saber o que aconteceu com nossos parentes e temos o direito de enterrá-los.
[caption id="attachment_1692" align="aligncenter" width="200" caption="Criméia Almeida, no Araguaia."][/caption]
Criméia Almeida – O governo não abre os arquivos porque não quer. Não vejo disposição nenhum do governo conosco e com essa causa. Existe uma preocupação em mostrar que alguma coisa está sendo feita. Mas não existe disposição em fazer de fato alguma coisa. Para se ter uma ideia: Em 2009 a União foi obrigada judicialmente a realizar buscas no Araguaia por uma ação judicial (iniciada em 2003) transitada e julgada em julho de 2007, movida pelos familiares dos mortos e desaparecidos (**). Então, o Ministério da Defesa, só em 2009, porque foi obrigado, criou o “Grupo de Trabalho Tocantins” para procurar os restos mortais dos guerrilheiros do Araguaia. Até 2007, a palavra oficial do governo era que a Guerrilha do Araguaia não havia existido, para poder também negar a chacina (conhecida como “Operação Limpeza”). Então, ao criar um grupo de trabalho para procurar as ossadas das vítimas assassinadas pelo Estado lá, dá outro nome. Entende como funciona? Na coordenação deste grupo de trabalho está um general de brigada, que declarou sua defesa do golpe militar de 64, dizendo que "o exército brasileiro atendendo a um clamor popular foi às ruas contribuindo substancialmente e de maneira positiva, impedindo que o Brasil se tornasse um país comunista."
Suzana Lisbôa – Os familiares só puderam acompanhar as buscas no Araguaia com um decreto presidencial. O ministro Jobim dizia que a nossa participação era ilegal porque éramos parte do processo. Ou seja, estavam sendo obrigados por nós a procurar os corpos e não queria que nós acompanhássemos. Inclusive, as primeiras buscas foram feitas por uma caravana essencialmente militar, sem sequer um representante da SEDH.
Como vocês veem essa divisão do governo Lula sobre o assunto, com o ministro Tarso Genro defendendo a punição dos torturadores? (a entrevista foi feita no final de 2009, antes da polêmica entre os ministros Nelson Jobim, da Defesa e Paulo Vannuchi, de Direitos Humanos em torno no PNDH-3)
[caption id="attachment_1693" align="aligncenter" width="200" caption="Criméia Almeida, hoje."][/caption]
Criméia Almeida – Para nós não faz diferença. Não vejo diferença e nem no que isso possa ajudar. Eles são todos ministros de um mesmo governo, que até agora não fez nada para avançar no esclarecimento das mortes e dos desaparecimentos. Acho que este governo como todos os outros é conivente com a ditadura ao não fazer nada de concreto. E o judiciário também é conivente.
Suzana Lisbôa – Eu acho importante que o ministro da Justiça defenda a punição dos torturadores e diga que crime de tortura não prescreve. Mas no final das contas, quando o Estado brasileiro não se posiciona contra oficialmente, não apura, não pune, se torna conivente. Ao final, o Estado é conivente com a tortura e os desaparecimentos durante a ditadura.
Mas saem notícias da Secretaria Especial de Direitos Humanos sobre os mortos e desaparecidos...
Suzana Lisbôa – O que a SEDH fez foi ampliar o critério de abrangência da Lei das indenizações e publicou o livro com o registro da memória dos desaparecidos. Apenas isso. A parte mais importante foi feita por nós, familiares, que foi a elaboração dos processos que permitiram os pedidos de indenizações e a liberação das tais certidões de óbito. O que é outro absurdo. Porque o Estado diz aos familiares para irem ao cartório mais próximo de sua residência com a cópia da lei e pedir o “atestado de morte presumida”. Só que essa morte vai entrar para o registro e estatística daquele local onde está situado o cartório, onde mora a família do desaparecido, e não onde ele morreu. A lei diz que o ônus da prova da morte é dos familiares, assim como a procura pelos corpos. E sem os arquivos, sem esses registros, nós não temos como provar nada. Tudo que conseguimos até hoje foi sendo construído, reconstituído, através dos poucos arquivos a que tivemos acesso ao longo desses anos.
Criméia Almeida – O meu marido, André Grabois, “oficialmente” teria morrido cinco antes do nascimento de seu filho. Ele foi morto, “desapareceu”, em 73 no Araguaia e no atestado de morte presumida constaria como morto em 68. O registro do óbito deve ser feito no local da morte, como em qualquer outro caso. Mas, para “facilitar” a vida dos familiares, liberou-se o registro do óbito no cartório mais próximo. Com isso, apaga-se a história. Já não bastava o Estado ter desaparecido com a pessoa, ainda lhe nega a sua história.
Como é ver os processos que julgam crimes das ditaduras em outros países latinos, como Uruguai, Argentina e Chile, em andamento?
Suzana Lisbôa – O Brasil é o país mais atrasado da América Latina na apuração e julgamento dos crimes ocorridos durante as ditaduras militares. O sentimento é de frustração. Nós fizemos uma tarefa que era do governo. Coube a nós, familiares, contar essa parte da história do país. O descaso do presidente da república é algo que me toca profundamente. Ainda me choca muito.
Criméia Almeida – Foi o Estado que sumiu com essas pessoas. Se depois disso, o Estado não tem poder para abrir os arquivos desses processos de desaparecimento, que venha a público dizer que não conseguiu e peça desculpas. Mas não faça de conta que está buscando informações quando não está. Se o Estado foi capaz de torturar e assassinar, que seja capaz de assumir o que fez.
Falando nisso, o governo fez uma campanha publicitária pedindo à população informações sobre os desaparecidos, para contar a história dessas pessoas, chamada “Memórias Reveladas”. Inclusive alguns familiares participam da campanha.
Suzana Lisbôa – Nós ficamos surpresas com a campanha. Parece mesmo jogo de cena, para dizer que o governo está fazendo alguma coisa. Mas joga para a população uma responsabilidade que é sua. Quando a campanha terminar vão dizer: “olha, a população não colaborou com nenhuma informação significativa”. Ficamos surpresas mesmo foi com os familiares que aceitaram participar. A D. Elzita, mãe do Fernando Santa Cruz, contou que deu um depoimento imenso, onde fazia cobranças ao governo e reclamava da demora na liberação das informações e em procurar os corpos, e que eles editaram e deixaram só aquele trecho dela lendo uma poesia e falando que não esquecia o filho. Fiquei muito admirada do Marcelo Rubens Paiva ter aceitado aparecer numa campanha do governo sobre o assunto.
Criméia Almeida – É só para constar, para dizer que estão fazendo alguma coisa. Isso tudo deve ser por causa do prazo dado pela Organização dos Estados Americanos (OEA) para que o governo abra os arquivos. O prazo já se esgotou e como o governo não fez nada, a corte criminal da OEA aceitou a denúncia entregue no dia 26 de março de 2009, e o Brasil deverá ser julgado ainda em 2010.
Suzana Lisbôa iniciou sua luta contra a ditadura no Julinho (Colégio Júlio de Castilhos – Porto Alegre/RS) e integrou a Ação Libertadora Nacional. Seu marido, Luiz Eurico Tejera Lisbôa, militante da ALN, PCB e VAL-Palmares, foi torturado e assassinado em 1972. A ossada de Luiz Eurico foi encontrada na vala clandestina do Cemitério Dom Bosco, distrito de Perus (***), São Paulo. Suzana presidiu a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos. Criméia Almeida cresceu numa família de militantes comunistas em Minas Gerais. Ex-guerrilheira no Araguaia e ex-militante do PCdoB, foi casada com André Grabois, também militante do PCdoB, desaparecido no Araguaia em 1973. Criméia foi presa e torturada grávida. Seu filho João Carlos, nasceu na prisão e conhece o pai apenas pela foto 3x4 dos arquivos do DOPS. André Grabois permanece como desaparecido.
(*) Um documento, arquivo sigiloso é "classificado" na origem. Os que receberam o carimbo de "ultra secreto" podem permanecer sem acesso público para sempre, conforme a norma legal. O "sigilo eterno" foi introduzido por decreto em 2002, pelo então presidente FHC – considerado inconstitucional. Lula, apesar dos apelos, o manteve em 2003.
(**) A sentença da Justiça Federal determinou a quebra do sigilo das informações militares sobre todas as operações de combate aos guerrilheiros no Araguaia e que a União informasse onde estão sepultados os mortos no episódio. Para realizar as buscas, a União teve um prazo de 120 dias, já esgotados.
(***) A vala clandestina de Perus foi localizada no dia 4 de Setembro de 1990, com 1049 ossadas encontradas em sacos plásticos, todos sem qualquer identificação. A investigação e identificação se deram por determinação da prefeita de São Paulo na época, Luísa Erundina.
Seguem link para a página do site dos desaparecidos políticos que relata toda a história da Vala de Perus e vídeo da campanha Memórias Reveladas.