Crônica de um terremoto: "Áquila hoje é um inferno"
Crônica sobre o terremoto em Áquila, Itália.
Tenho uma querida amiga brasileira, Astrid Lima, que vive em Roma há mais de quinze anos. Lá, casou-se com o jornalista Andrea Palladino, teve filhos e trabalha com o que sabe fazer melhor: produz documentários, faz bom jornalismo e é uma cronista com grande sensibilidade.
Ontem, após sabermos do terrível terremoto em Áquila, ela entrou em contato para nos tranqüilizar: ao menos com ela e a família estava tudo bem. Ainda na segunda-feira ela e seu marido estiveram em Áquila na região de Abruzzo. A crônica que se segue é dela e as fotos são do Andrea.
[caption id="attachment_771" align="aligncenter" width="429" caption="Detalhe de um prédio atingido pelo terremoto Áquila, Itália."]
Crônica de um terremoto
por Astrid Lima
Não consigo deixar de sentir a terra tremer sob os meus pés.
É como se houvesse passado dias dentro de um navio mas na verdade caminhei nas últimas horas entre edifícios destruídos, asfaltos rachados, muros abatidos, sentindo dezenas de tremores de baixa intensidade. São aquelas ondas sísmicas criados logo após um forte terremoto. É a terra, são as rochas que se ajeitam, que procuram encontrar um novo equilíbrio, que se assestam.
[caption id="attachment_775" align="aligncenter" width="500" caption="Voluntários da Defesa Civil liberam algumas estradas, após terremoto em Áquila."][/caption]
E hoje em Abruzzo, na Itália, sentimos tantíssimas, dessas ondas, a tal ponto que não era mais possível distingui-las das vibrações criada pelos caminhões do exército, pelos jipes da defesa civil, pelas ambulâncias que corriam a alta velocidade com as sirenes a todo o volume gritando uma urgência que arrepiava a pele e obrigava a proteger o ouvido, duas, três, quatro, oito, uma atrás da outra percorrendo as estradas plenas de detritos.
Áquila hoje é um inferno. Há o aspecto de uma cidade bombardeada e pelas ruas uma multidão em estado de choque vaga sem uma meta precisa, o olhar perdido, as mãos agarradas aos cobertores distribuídos pelo exército, cobrindo pijamas, roupas de ginástica, tênis - uma garotinha calçava uma sandália cor-de-rosa a forma de coelho - as primeiras peças de vestiário que se encontra durante a corrida para sair da própria casa. Uma corrida que pode significar a diferença entre vida e morte.
[caption id="attachment_774" align="aligncenter" width="429" caption="Cenas da destruição em Áquila: Rua XX de setembro bombeiros tentam resgatar pessoas presas no meio dos escombros."][/caption]
Para chegar na capital da região de Abruzzo é preciso enfrentar montanhas, viadutos e túneis. Seguíamos pelo rádio as últimas notícias: 10 mil prédios atingidos, treze vítimas fatais, entre elas, quatro crianças. Eram as primeiras cifras. Ninguém havia a ilusão que permaneceriam tais.
As autoridades fecharam partes da rodovia de alta velocidade e lançavam apelos para que ninguém tentasse entrar na região. Durante um longo trecho somos os únicos na estrada, nenhum carro numa direção ou na outra, parece que o mundo acabou. No final de um dos túneis a diferença atmosférica é brutal, passa-se do clima primaveril e dos 19 graus do Lácio aos 3 graus de Abruzzo, com a neve nos picos das montanhas.
Atravessamos viadutos suspendidos a dezenas de metros do chão, torcendo para que não tenham sido afetados pelo sismo. Ultrapassamos pequenos grupos residenciais, ainda nenhum vestígio do terremoto que às 3. 32 da madrugada de domingo abalou a região de Abruzzo e foi percebido em parte consistente da Itália.
Às 07.30 da manhã finalmente chegamos na periferia de Áquila. Estacionamos numa avenida para evitar as filas de carros que estão entrando na cidade. Não consigo explicar esse êxodo invertido, depois entendo que são pessoas que haviam fugido durante a madrugada e ora tentavam retornar à própria casa, verificar os danos, tocar com a mão a situação.
Passamos por supermercados, por lojas, bancos, bares, hotéis, todos fechados. Os estacionamentos eram repletos de gente ao redor dos próprios carros, o bagageiro aberto. Ajeitam malas, cobertores, objetos, as poucas coisas que conseguiram salvar.
Os primeiros edifícios não apresentam sinais evidentes do terremoto, pelo menos não desse lado da cidade. Aos poucos começamos a ver rachaduras, janelas levemente entortadas, partes de teto descobertos, tijolos pelas calçadas. As pessoas descem em pequenos grupos, o braço ao redor dos ombros, alguns arrastam malas.
O "M" da placa de um McDonald caído de cabeça para baixo delimita a fronteira última. Ali no chão aquele moderno letreiro de Dante indica o umbral do inferno, é uma advertência, "deixai toda a esperança, o vós que entrais". E, logo depois, um armário desponta do primeiro andar de um prédio, as paredes que deveriam cobri-lo não existiam mais.
Começo a murmurar oh, merda, mas já sei que é o mínimo e que é apenas o início.
[caption id="attachment_776" align="aligncenter" width="429" caption="Destruição em Áquila: detalhes das ruínas na estrada na Casa do Estudante."][/caption]
A medida que avanço sinto a atmosfera tornar-se mais frenética. A idéia que se há de uma catástrofe vai virando realidade. As sirenes não param um instante sequer, é um barulho dominante, inquieta, contínuo. Numa padaria, o primeiro comércio que encontro aberto, as pessoas esperam em fila para comprar pão, presunto, queijo, água, o necessário para um café da manhã arranjado. O cartaz da panificadora, escrito com pincel atômico, parece pueril, inadequado, lembra um cotidiano distante, "Aconselhamos: aos domingos não percam tempo procurando pão quentinho em outras partes. Pão bom vocês encontram só aqui!"
Continuamos entrando na cidade. É gradual o encontro com o desastre mas nem por isso atenua o choque do cenário na nossa frente: fileiras de prédios ainda em pé mas com rachaduras, rebocos partidos, varandas em equilíbrio precário, chaminés quebradas, janelas tortas, muros desmoronados, blocos de pedras - no caso das construções antigas - e de tijolos - naquelas modernas - saindo das paredes. Entretanto, é subindo pela rua XX de setembro, que contorna o centro, que começamos a constatar a dimensão da tragédia. Na nossa frente uma construção completamente pulverizada. Uma mulher grita o nome de uma pessoa enquanto bombeiros e voluntários caminham sobre a colina de detritos que antes era um prédio de 5 andares. Escavam com as mãos, com pás, martelos. Uma escavadeira de pequenas dimensões, usada nas operações de resgate justamente por não acrescentar mais peso à estrutura, extrai os detritos num dos lados.
Policiais e agentes da proteção civil bloqueiam o transito, somente os veículos autorizados e a imprensa podem passar. Assim mesmo devemos permanecer do outro lado da calçada, à distância de segurança. E ali, próprio enquanto ultrapassava um caminhão de bombeiros estacionado, sinto o primeiro tremor intenso após aquele da madrugada.
Eu sabia que era provável, que seria inevitável mas nutria o desejo vão de poder evitar um tremor enquanto estivesse percorrendo a cidade. Foi tão intenso, instantâneo e rápido que medo e susto se sobrepuseram um ao outro. O asfalto se levantou, perdemos o equilíbrio, do meu lado o caminhão dos bombeiros simplesmente se alçou no ar por alguns centímetros. Foi terrível mas não era nada em comparação com aquele que havia desencadeado esse inferno.
[caption id="attachment_780" align="aligncenter" width="500" caption="No meio dos escombros da Casa do Estudante em Áquila, bombeiros tentam resgatar um corpo."]
Adentrando nas ruas do centro de Áquila encontramos outros prédios semi-demolidos, outras rachaduras, cúmulos de destroços, andares e andares sem paredes externas, como se tivessem sido rasgados. Não sabíamos nunca o que encontraríamos entrando numa nova rua. Vimos quartos, salas, partes de móveis, televisores, a cabeceira colonial de uma cama, como as casas gigantes de brinquedo onde são expostos o interior. Através de um enorme buraco no segundo andar de um edifício um balão flutuando indicava que ali vivia uma criança. Era quase obsceno aqueles objetos domésticos, íntimos, exibidos daquele modo ao olhar de estranhos. E mais: fiações elétricas e tubos, o sistema sanguíneo de prédios, a alma de uma cidade .
Superamos uma ponte e logo depois outra drama, um dos prédios da Casa do Estudante Universitário estava tombado de um lado, com um andar em menos em relação aos outros prédios gêmeos. A faixa horizontal de concreto armado da entrada estava rompida no meio, formando um V.
Áquila, além de ser capital da região de Abruzzo, é também uma cidade universitária, há muitas atividades culturais e reúne milhares de jovens. "Eu estava no quarto andar, consegui me salvar saindo pela janela, alcançando a varanda e pulando de uma para outra enquanto a terra tremia" me conta um rapaz sentado na pequena pracinha diante da residência universitária, junto com dezenas de outros estudantes que assistem ao trabalho dos bombeiros, esperando de rever vivos os amigos que ainda estão sob as ruínas. Um outro garoto me diz que haviam setenta, cem pessoas dentro do prédio, "a sorte é que muitos haviam tornado à casa para as férias de Páscoa".
Um bombeiro abre as portas traseiras de um furgão e vejo vários cães de diversas raças dentro de celas e distribuídos em três planos. São os animais adestrados para encontrar pessoas nessas condições.
Ouço que um dos garotos que estão tentando salvar repetia aos bombeiros que estava no 5° andar. Ele não havia idéia de que agora, depois do terremoto, se localizava na parte inferior das ruínas, na altura da rua.
Alguns metros mais adiante da residência universitária, virando à direita, um soldado está parado na frente de um corpo coberto, obstruindo ele à visão dos passantes. Daquele emaranhado de cobertores saem pés com meias pretas. Aquela pessoa havia morrido sem ter tido o tempo de colocar os sapatos e se pode somente desejar que estivesse dormindo, que não tenha sofrido.
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No final dessa rua um outro prédio completamente destruído. Pelo menos oito pessoas ainda estão presas ali dentro, os bombeiras escavam desesperadamente e pedem silêncio para ouvir o apelo de quem ainda está preso sob toneladas de cimento.
Numa outra rua, estreitíssima, é impossível passar, pois está obstruída por pedaços de construções de ambos os lados e mais uma vez vem em mente a imagem de mil bombas cegas que reduzem em pó tudo o que tocam.
Tentamos evitar essas ruas estreitas mas é difícil. São típicas das cidades antigas, que foram construídas séculos atrás quando o carro não fazia parte de nenhum sonho. Caminhar por elas é perigoso, os prédios podem desabar em qualquer momento.
Um edifício com a arquitetura fascista apresenta uma profunda fissura vertical. É curioso porque o estilo representa força, solidez, concretude das linhas. Encontramos mais edifícios modernos destruídos, reduzidos em pó. Isso será algo que me surpreenderá por toda a viagem dentro da cidade de Áquila. Pó, areia branca, ferro. Casas de concreto armado que foram construídas no pós-guerra ou nos anos 80, como no caso da Casa do Estudante, simplesmente arrasadas. Pela lei deveriam ser anti-sísmicas, é mais um elemento desse desastre anunciado que irá se delinear a medida que se passarão as horas, como a evacuação do recente e modernissimo hospital da capital, declarado instável, somando problemas ao problema.
[caption id="attachment_779" align="aligncenter" width="429" caption="Resgate de vítimas na Casa do Estudante, Áquila."]
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Caminhamos pelo centro das ruas para nos proteger da queda de fragmentos de prédios, o olhar alternando de um lado ao outro, para cima, desviando de automóveis destruídos. Praticamente não existe nada que não tenha sido tocado pelo terremoto.
Numa parte da cidade o barulho das sirenes foi substituído por centenas de alarmes de carros, é insuportável. Logo depois sinto um outro barulho, inédito, preciso de alguns instantes para descobrir que é o alarme de uma agência bancária que está descarregando. Parece um gemido. Um prédio agonizando, rouco de tanto gritar.
Numa vitrine alguns manequins estão encostados contra o vidro mas sinto medo quando vejo um deles caído no chão, uma das faces apoiadas no pavimento, o olhar na direção da rua.
O cheiro de gás está por toda parte, provem das tubulações subterrâneas que abastecem a cidade, em vários pontos a água brota do asfalto e uma vaga possibilidade de explosão me toca a mente. É um pensamento que permanece pouco tempo, escorre via por um lado do cérebro que inicia a não ser mais capaz de deter as imagens, os odores, os ruídos daquela cidade.
As pessoas estão em estado de choque, são silenciosas, muitos rodam pela cidade, continuo encontrando algumas delas. Alguns conseguem chorar mas na maioria das vezes estão com o olhar perdido, quase estivessem com a mente em outro lugar.
[caption id="attachment_778" align="aligncenter" width="429" caption="Terremoto em Áquila: Detalhe da fachada da Casa do Estudante."]
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Uma senhora parada na frente de um prédio residencial me fala que está indo para a casa da filha, em outra região do país. Espera pelo marido que havia entrado na garagem subterrânea para buscar o carro. Explica que passou 30 anos pagando um apartamento que agora não não é estável. Diz que perdeu tudo. Tem 75 anos. Chama o marido que teima em não aparecer e ambas sabemos - mas não dizemos - que o prédio pode cair ou um novo tremor pode acontecer de um momento para outro. O portão automático ainda abaixado. Ela abana a cabeça, chora baixinho.
Penso naquela inteira cidade onde todos, todos os prédios estão vazios ou concluíram a própria existência engolindo pessoas, objetos, histórias de uma vida inteira. Penso em Onna, em Rocca di Cambio, em Paganica, em Fossa, nas cidadezinhas ao redor de Áquila terrivelmente atingidas ou que simplesmente desapareceram do mapa. Penso às centenas de pessoas que vivem em casas isoladas, nas montanhas, e de que não temos notícias.
Não resisto e lhe dou um abraço. Um abraço longo, apertado. E lhe desejo todo o bem do mundo.
Itália, segunda - feira, 06 de abril de 2009