Os males que a igreja causa em nome de Deus vão muito além da excomunhão de médicos
AOS COLEGAS de Pernambuco responsáveis pelo abortamento na menina de nove anos, quero dar os parabéns. Nossa profissão foi criada para aliviar o sofrimento humano; exatamente o que vocês fizeram dentro da lei ao interromper a prenhez gemelar numa criança franzina. Apesar da ausência de qualquer gesto de solidariedade por parte de nossas associações, conselhos regionais ou federais, estou certo de que lhes presto esta homenagem em nome de milhares de colegas nossos. Não se deixem abater, é preciso entender as normas da Igreja Católica. Seu compromisso é com a vida depois da morte. Para ela, o sofrimento é purificador: "Chorai e gemei neste vale de lágrimas, porque vosso será o reino dos céus", não é o que pregam? É uma cosmovisão antagônica à da medicina. Nenhum de nós daria tal conselho em lugar de analgésicos para alguém com cólica renal. Nosso compromisso profissional é com a vida terrena, o deles, com a eterna. Enquanto nossos pacientes cobram resultados concretos, os fiéis que os seguem precisam antes morrer para ter o direito de fazê-lo. Podemos acusar a Igreja Católica de inúmeros equívocos e de crimes contra a humanidade, jamais de incoerência. Incoerentes são os católicos que esperam dela atitudes incompatíveis com os princípios que a regem desde os tempos da Inquisição. Se os católicos consideram o embrião sagrado, já que a alma se instalaria no instante em que o espermatozoide se esgueira entre os poros da membrana que reveste o óvulo, como podem estranhar que um prelado reaja com agressividade contra a interrupção de uma gravidez, ainda que a vida da mãe estuprada corra perigo extremo? O arcebispo de Olinda e Recife não cometeu nenhum disparate, agiu em obediência estrita ao Código Penal do Direito Canônico: o cânon 1398 prescreve a excomunhão automática em caso de abortamento. Por que cobrar a excomunhão do padrasto estuprador, quando os católicos sempre silenciaram diante dos abusos sexuais contra meninos, perpetrados nos cantos das sacristias e dos colégios religiosos? Além da transferência para outras paróquias, qual a sanção aplicada contra os atos criminosos desses padres que nós, ex-alunos de colégios católicos, testemunhamos? Não há o que reclamar. A política do Vaticano é claríssima: não excomunga estupradores. Em nota à imprensa a respeito do episódio, afirmou Gianfranco Grieco, chefe do Conselho do Vaticano para a Família: "A igreja não pode nunca trair sua posição, que é a de defender a vida, da concepção até seu término natural, mesmo diante de um drama humano tão forte, como o da violência contra uma menina". Por que não dizer a esse senhor que tal justificativa ofende a inteligência humana: defender a vida da concepção até a morte? Não seja descarado, senhor Grieco, as cadeias estão lotadas de bandidos cruéis e de assassinos da pior espécie que contam com a complacência piedosa da instituição à qual o senhor pertence. Os católicos precisam ver a igreja como ela é, aferrada a sua lógica interna, seus princípios medievais, dogmas e cânones. Embora existam sacerdotes dignos de respeito e admiração, defensores dos anseios das pessoas humildes com as quais convivem, a burocracia hierárquica jamais lhes concederá voz ativa. A esperança de que a instituição um dia adote posturas condizentes com os apelos sociais é vã; a modernização não virá. É ingenuidade esperar por ela. Os males que a igreja causa à sociedade em nome de Deus vão muito além da excomunhão de médicos, medida arbitrária de impacto desprezível. O verdadeiro perigo está em sua vocação secular para apoderar-se da maquinária do Estado, por meio do poder intimidatório exercido sobre nossos dirigentes. Não por acaso, no presente episódio manifestaram suas opiniões cautelosas apenas o presidente da República e o ministro da Saúde. Os políticos não ousam afrontar a igreja. O poder dos religiosos não é consequência do conforto espiritual oferecido a seus rebanhos nem de filosofias transcendentais sobre os desígnios do céu e da terra, ele deriva da coação exercida sobre os políticos. Quando a igreja condena a camisinha, o aborto, a pílula, as pesquisas com células-tronco ou o divórcio, não se limita a aconselhar os católicos a segui-la, instituição autoritária que é, mobiliza sua força política desproporcional para impor proibições a todos nós.
Folha de São Paulo, 14/3/09, Folha Ilustrada