"Sou feia, mas tô na moda"

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(...)
É triste amigo a gente chegar do trabalho
E ser esculaxado por um motivo que eu nem sei
O rico sente pena, mas sentir pena é fácil
Ninguém passou na pele a humilhação que passei
Aos poderosos eu lanço um desafio
Viver um dia de pobre e o pobre um dia de rei
Mas eu só peço a esse moço por favor 
Antes de bater na cara, respeite o trabalhador 
(Meus Direitos- techo do funk de Cidinho e Doca)

Acabei de assistir ao documentário de Denise Garcia que tem o nome do título deste post. Infelizmente fiz isso com 4 anos de atraso.

Fiquei embasbacada com a beleza do que vi, com as discussões colocadas pelos sujeitos do funk carioca, principalmente as mulheres.

A clareza desses agentes de quem são e como são vistos, de como são desrespeitados cotidianamente como pessoas e cidadãos não me surpreende, mas me supreendeu a capacidade que eles tiveram de me chacoalhar, deslocar-me e me fazer ir direto para rede pesquisar mais letras de funk, e saber mais sobre o tema reduzido a um pequeníssimo repertório que sempre desprezei ouvir.

Como toda mulher de classe média ignorante chocacava-me os palavrões e o que para mim era lido como submissão da mulher, sua adesão ao discurso machista, o uso do sexo etc. Tudo isso caiu por terra. Posso não concordar com os métodos delas, mas eu tô por fora, Tati Quebra Barraco, Pink e as demais funkeiras têm uma enorme consciência do que fazem, por vezes, acho até que são mais feministas e corajosas do que eu.

O funk que salta do documentário de Denise Garcia é profundamente democrático: cabe homens sarados rebolando sem perder sua masculinidade e o convívio com travestis como Lacraia sem ser morto e humilhado, cabe gordos, negros, grávidas, velhos e jovens, é uma convivência de fazer inveja para a banda dos inseridos socialmente que pensam viver em uma democracia.

(Lacraia e MC Serginho)

Em minhas pesquisas nesta tarde encontrei o breve texto de Roberto Carlos da Silva Borges que, pelo tempo, já deve ter concluído sua tese de doutoramento. O que ele argumenta vai na linha da resenha que pretendia fazer, mas encontrei pronta, não vou repeti-lo, até mesmo alguns depoimentos que me chamaram atenção ele destacou. Vale a pena a leitura, possivelmente como eu, vocês vão se interessar por assistir ao documentário e possivelmente gostem ou não de funk vão dar uma boa remexida no preconceito daquilo que muitos chamam de subcultura. Subcultura é a minha em relação ao funk. “Sou feia, mas tô na moda” Por Roberto Carlos da Silva Borges(1), UFF Revista Contra Cultura (Tati quebra-barraco)

Em outubro/novembro de 2005, um cartaz espalhado pela cidade do Rio de Janeiro causava surpresa e, por que não dizer, espanto a muitas pessoas que caminhavam pelas ruas cariocas. O inusitado teor do conteúdo que veiculava despertou particularmente minha curiosidade. Em letras enormes, ele dizia somente o seguinte: “Sou feia, mas tô na moda”. Essa chamada espetacular já era suficiente para provocar reflexões a qualquer de nós, seres imersos em um tempo e em um espaço nos quais a beleza é uma imposição, em que aqueles que não são “belos”, ou seja, não correspondem a um estereótipo “x” ou “y” de beleza, estão alijados de um sistema perverso e extremamente ditatorial. Descobri, logo, que “Sou feia, mas tô na moda” se tratava da apropriação de um bordão criado por Tati Quebra-Barraco, uma das cantoras mais populares de funk, e que o mencionado bordão se transformara em título de um documentário sobre o funk carioca. Vários outros cartazes começaram a aparecer e, tão logo houve a estréia do filme, apressei-me em assistir a ele.

“Sou feia, mas tô na moda” foi para mim uma verdadeira revelação. Estava ali na tela um olhar sobre o funk e sobre a produção funkeira, muito diferente daquilo que meus olhos podiam alcançar, e um objeto de estudo que considerei rico e bastante promissor, ao ponto de transformá-lo em minha tese de doutoramento.

Como defendido por Bill Nichols, que é visto por muitos teóricos como um dos maiores pensadores do mundo na área de cinema, os filmes de representação social ou os de não-ficção, comumente chamados de documentários, representam, de forma palpável, os aspectos desse mundo que ocupamos e compartilhamos. É a realidade social que sobressai, prioritariamente, de acordo com a seleção e a organização determinadas pelo cineasta.

Assim, o que o filme documentário veicula são visões de um mundo comum, com o objetivo de que as exploremos e as compreendamos. Ambos os tipos de filmes (os de ficção e os de não-ficção) são histórias que pedem tanto que acreditemos nelas quanto que as interpretemos.

A interpretação está ligada à compreensão da transmissão de significados e valores. A crença depende da forma como reagimos a esses significados e valores. Certamente, um dos objetivos do documentário de representação social é estimular, encorajar a crença. É necessário que se creia no mundo do filme como real, já que os documentários de representação social pretendem exercer algum tipo de impacto no mundo histórico. Isso só é possível se a persuasão e o convencimento a respeito do ponto de vista que veiculam forem eficazes. Bill Nichols, quando defende esse ponto de vista, traz à tona um parecer muito interessante. Para ele, essa necessidade do documentário instilar crença aproxima-o da tradição Retórica, na qual a eloqüência tem um objetivo estético e social.

Logo, o encanto do documentário reside em colocar, diante das pessoas, questões atuais de nossa sociedade, apresentando-lhes suas possíveis soluções. Dessa forma, ele acaba por nos tornar capazes de olhar para temas oportunos que necessitam de atenção.

As questões sociais que nos são colocadas pelo documentário de Denise Garcia são muito delicadas e caras para todos nós, principalmente por tocarem em alguns de nossos tabus e “sutis” preconceitos.

Parece-me que o primeiro deles está ligado, ainda que de forma indireta, ao nosso tão cantado “mito da democracia racial”. Ao ser abordado o preconceito, a discriminação, o estigma sofrido pelos moradores das favelas não podemos mais ser hipócritas ao ponto de pensarmos que o preconceito gerado em relação àquelas áreas e a seus habitantes é exclusivamente social. Para uma clareza maior a esse respeito, sugiro a leitura do livro Do Quilombo à Favela – A Produção do “Espaço Criminalizado” no Rio de Janeiro, de Andrelino Campos (RJ: Bertrand Brasil, 2005).

Nessa obra, Campos, por intermédio de sua pesquisa, nos mostra como os negros brasileiros foram relegados à penúria e à miséria, sem direito à terra e à moradia, sendo obrigados a substituir a senzala por abrigos e casebres em lugares afastados, criando, dessa maneira, as primeiras favelas de nossas terras. Cidinho e Doca

Denise Garcia marca claramente a denúncia desse preconceito e utilizo-me de duas falas de pessoas entrevistadas no filme que são exemplos claros disso:

Raquel

... Por que acha que só por ser favelado, a gente não tem cultura. Então eles acham que funk não é uma cultura. Falou em funk, vê logo: Cidade de Deus, os favelados.

Andrea

— Nós fomos pro show, outro dia com a Tati e aí chegamos nesse show e eles falaram assim: “Chegou os favelados”. Nós debaixo, jogaram um jato d’água, eu virei e falei assim: “Lá na CDD os favelados não joga água do prédio”. Maior jatão, “scheleps”.

Uma pergunta, retórica, que não me canso de fazer é: numa sociedade permissiva como a nossa, os problemas suscitados pelo funk estão ligados ao que ele enuncia ao a quem é o seu enunciador? O “problema” é o que é falado ou está em quem fala?

Uma outra questão, claramente exposta, é o da diferença de gêneros. “Sou feia, mas tô na moda” foi produzido por uma mulher e a grande maioria das pessoas que são entrevistadas – e nele aparecem – são do gênero feminino. Algumas  questões sérias, próprias do universo feminino, são abordadas.

Há menos de duas décadas a maioria das mulheres aceitava ainda as investidas masculinas como elogio aos seus atributos ou como um “mal necessário”. Hoje, independente da classe social, cultural ou econômica da mulher, tudo está diferente. Elas têm a sua voz, ou procuram tê-la.

Encontram respaldo para isso nos livros, na TV, na propaganda e também nas músicas que cantam e que ouvem cantar. A fala de Raquel, também extraída do documentário, pode ser um exemplo disso: Raquel--Pras mulheres e pros homens também, né, porque, no caso dos homens, chega e fala para as mulé, chega e fala “Ah, vamus ali”. As mulé antigamente, antigamenteantes de surgir o funk, ia numa boa, aceitava, vamos no meu prédio, vai e assim tava indo, agora surgindo o funk, não. Especialmente a música da Tati, que está dizendo muita coisa, alertando as mulheres.

Carecemos, é claro, de distanciamento temporal para avaliarmos com clareza algumas peculiaridades do universo do funk. Mas parece-me não haver dúvidas de que o discurso das mulheres funkeiras, veiculado no documentário, pode ser considerado, sim, principalmente por sua ousadia em se expressar como SER, um discurso feminista. Ainda que em “ziguezague”, ainda que com alguns equívocos. Clara e sonoramente, pode-se ouvir a voz feminina que clama por igualdade, que clama pela liberdade de usar o seu corpo, o seu sexo, o seu desejo, da forma como considerar apropriada, sem se importar com o juízo que farão de si.

“Sou feia, mas tô na moda”, como qualquer filme documentário, trata do nosso mundo, do mundo em que vivemos e não é uma ficção criada, imaginada por Denise Garcia. Podemos dizer que o filme aponta para o tamanho da desigualdade social (e, por que não dizer, racial) ainda existente no Brasil. É possível constatar, algumas vezes, na fala de alguns entrevistados, a denúncia dessa desigualdade e da ainda existente discriminação por ela gerada.

O documentário de Denise Garcia cumpre, então, a função cultural/social dos filmes de seu gênero: faz-nos refletir ainda mais a respeito de assuntos que residem na base de nossa sociedade (preconceitos e discriminações, neste caso) – e com os quais nos habituamos tão friamente a conviver que acabam por nos parecer invisíveis.

(1) Roberto Carlos da Silva Borges é Doutor em Estudos da Linguagem e atua como Professor de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira no Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET-RJ).