Com 25 anos de experiência, o médico oncologista Riad Younes é um dos maiores especialistas do Brasil e referência mundial no tratamento de câncer do pulmão. Ele é o atual diretor-clínico do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo.
Em entrevista a Terra Magazine, Younes compartilha experiências desde o começo de sua carreira médica e cita casos que o chocaram. Como o de um paciente que tivera de amputar os quatro membros de seu corpo em virtude de doença causada pelo fumo e ainda assim bradava por que alguém lhe acendesse um cigarro.
- Eu fiquei chocado. Fui tentar conversar com ele e ele disse “não fala comigo, eu quero um cigarro, não quero nem saber” - conta.
Younes destaca pesquisa realizada recentemente pelo Instituto Nacional do Câncer (INCA), a qual revela que a cada ano cerca de 2.500 brasileiros morrem por causa de complicações causadas pelo fumo passivo.
- Tem muitos tumores por aí que não matam tanta gente por ano. É uma tragédia - reage.
De acordo com o oncologista, o Brasil possui centros de excelência no tratamento de doenças causadas pelo fumo, no entanto, o acesso a este centro permanece algo muito restrito. Na entrevista a seguir, o médico Younes explica sua preocupação com uma nova onda de adeptos do tabagismo e aponta os fatores que considera determinantes para o sucesso do tratamento daqueles que desejam deixar bitucas e maços como uma fumaça do passado.
Terra Magazine - O sr. possui 25 anos de experiência no tratamento de doenças causadas pelo fumo. Conte um caso que o impressionou…
Riad Younes - O primeiro caso na minha vida médica que me chamou atenção sobre o vício do cigarro, a dificuldade de largar o cigarro e a tragédia que isso pode causar ocorreu quando eu estava em treinamento na residência, no meu primeiro plantão em UTI no Hospital das Clínicas, que foi numa UTI cirúrgica. Eu já era médico formado há três anos e meio. Quando chego nesse meu primeiro plantão, eu ouço um paciente gritando lá do fundo. Perguntei o que era aquilo para o outro médico de plantão e ele “ah, isso aqui é assim todo dia”. Eu fui lá ver o paciente. Ele devia ter uns 40 anos de idade, jovem, e ele estava gritando querendo que alguém acendesse um cigarro para ele. Na verdade, esse paciente tinha sido operado, era a quinta operação dele e nas primeiras operações foi preciso amputar as duas pernas na altura do joelho. Depois amputaram o braço esquerdo na altura do cotovelo e dessa vez tinham amputado o braço direito. Ele tinha uma doença conhecidíssima causada pelo cigarro, que obstrui as artérias dos braços e das pernas.
Como chama essa doença?
Tromboangeíte obliterante. Então, esse paciente perdeu uma perna mas continuou fumando, perdeu a outra e continuou fumando, perdeu um braço, perdeu o outro… Ele ficou, coitado, um tronco com quatro tocos pendurados nele, gritando por cigarro por não conseguir acender o cigarro porque não tinha mais mão. Eu fiquei chocado. Fui tentar conversar com ele e ele disse “não fala comigo, eu quero um cigarro, não quero nem saber”. Veja você o tamanho do problema.
Um descontrole total.
De lá pra cá eu trabalho numa área que trata do câncer de pulmão e vejo a dificuldade que é. Você fala para a pessoa, “olha você tem um nódulo no pulmão, você está arriscado a ter um câncer”. A pessoa até quer parar, mas ela não consegue.
Caracteriza uma dependência química, de fato?
Totalmente. Se pegarmos 100 pessoas fumantes com vontade de parar de fumar - não aquelas que não estão nem aí, mas as que querem mesmo para de fumar - por esforço próprio, utilizando medicação, etc, nem 5% delas vão parar por mais de um ano. O problema é que tem um monte de programa que fala que metade dos pacientes pararam, mas não dizem por quanto tempo. Depois de um mês ou dois a grande maioria já voltou. Nosso grande problema é que as pessoas fumantes têm uma dificuldade muito grande de parar de fumar espontaneamente. A gente só consegue medir a taxa de sucesso de programas contra o cigarro, primeiro quando a gente individualiza a avaliação de cada paciente. Porque nem todo mundo fuma pela mesma razão. Tem gente que fuma porque é tímido, porque tem que fazer alguma coisa com as mãos, outro fuma porque é viciado em nicotina, ou porque tem depressão e com a nicotina se sente melhor…
É uma espécie de fuga?
Exatamente. Mas você há de concordar comigo que uma pessoa ansiosa é diferente de alguém que sofre de depressão, etc. Cada um tem que ser encarado de uma forma diferente, tem que ser individualizado. Individualizando a avaliação de cada um, você vai descobrir o ponto fraco por onde o cigarro entra, e a partir daí você tenta ajudá-lo. Depois você faz um programa que ajude ele a parar de fumar incluindo a redução de nicotina, e remédios que auxiliam.
Tratamentos com adesivos de nicotina funcionam?
Claro, pode ajudar no tratamento das pessoas onde a gente consegue detectar claramente a dependência da nicotina. Para essas pessoas, a colocação de adesivos repõe a nicotina - a nicotina não faz mal, só vicia, o que faz mal é o restante que vai junto com o cigarro - damos a nicotina, a pessoa não sente tanta falta da nicotina e a seguir, aos poucos, vamos tirando a nicotina. Aí a pessoa já parou de colocar as matérias nocivas no pulmão, enquanto vamos tirando o vício na nicotina. Se considerarmos que são apenas 5% as pessoas que espontaneamente conseguem parar, com o adesivo da nicotina isso pode subir para até 15% ou 20%, ou seja, até quatro vezes mais.
Essas doenças aparecem apenas se a pessoa fuma em quantidades exageradas? Uma pessoa que fuma pouco também está sujeita a doenças graves?
O que está claro, a partir da realização de estudos, é que a incidência de doenças graves - câncer de pulmão, infarto, derrame - aumentam quão maior for a exposição ao cigarro. Uma pessoa que fala que fuma um ou dois, só depois do almoço ou do jantar, para relaxar. Em 10 dias iss
o é um maço. Se ela fumar isso durante uns 20 ou 30 anos, o dano será grande. No fundo no fundo, não existe nível seguro de cigarro. Obviamente, quanto mais você fuma, mais perigoso é. Mas, mesmo se você fuma pouco, seu risco é menor do que quem fuma muito, mas muito maior do que quem não fuma.
Em que medida os fumantes passivos também podem ser prejudicados?
Antes de tudo, o fumante passivo tem que ser bem definido. Às vezes a pessoa está na rua e respira a fumaça do cigarro e já acha que é fumante passivo. Não é isso. Fumante passivo é aquele que convive com um fumante crônico durante muito tempo, ou trabalha numa área, num ambiente fechado onde as pessoas fumam constantemente. O fumante passivo, obviamente, não vai fumar igual o fumante ativo, ele fuma menos. Mas aqui a gente acaba saindo na mesma conversa, numa casa com dois fumantes crônicos, você estaria fumando uns 3, 4 cigarros por dia. Se fuma isso durante 10 ou 15 anos, o risco é grave de ter doenças graves de pulmão, enfisema, infarto derrame… tudo igual.
Mesmo que ela nunca tenha tragado, nunca tenha posto um cigarro na boca…
Ela está fumando por tabela do vizinho. Por isso que recentemente o Instituto do Câncer fez uma pesquisa muito interessante. Pegaram domicílios de pessoas que não são fumantes e convivem com um ou mais fumantes crônicos. Pegaram pessoas com mais de 35 anos, para dar tempo deles “fumarem”. Perceberam que ao redor de 2.500 brasileiros morrem por ano por doenças relacionadas ao fumo por causa do fumo passivo. Tem muitos tumores por aí que não matam tanta gente por ano. É uma tragédia.
O que o sr. acha dos projetos de lei que restringem o fumo em ambientes coletivos? Qual sua reação à fala do presidente Lula, que em reação a estes projetos e afirmou “na minha sala, quem manda sou eu”?
Essa fala do presidente Lula, que tem todo o meu respeito, foi infeliz. Não acho que a gente tem que levar as nossas leis de forma tão leviana. Isso é mundialmente conhecido, em todos os lugares do mundo que introduziram leis restringindo o tabagismo. Quanto mais você restringe, menor a incidência de mortes causadas pelo cigarro. E isso ajuda as pessoas a fumarem menos. Aliás, mesmo para os fumantes, quando o cigarro não é mais socialmente aceitável e ele se torna “ilegal”, contra a lei, a pessoa não tem mais aquele glamour, aquela imagem de que está fazendo uma coisa simpática. Então, fica até mais fácil parar de fumar. E, óbvio, quem não fuma tem um acesso menor aos fumantes.
E para os fumantes, apenas ver alguém fumando já atiça a vontade.
A pessoa que nunca fumou, na hora que vê um amigo fumando, no clube, em qualquer ouro lugar, já fica tentada a começar a fumar, principalmente os jovens. Quanto menos ver, menores são as chances de fumar. Tem um estudo publicado na Espanha sobre leis de restrição ao fumo em restaurantes que mostram uma redução de até 30% da exposição ao fumo passivo. Eu acho que isso é uma coisa maravilhosa.
Ou seja, leis de restrição podem, de fato, reduzir as mortes?
Isso já está comprovado. Não é como a demagogia de um político querendo atrair apoio para o partido dele… Tem dados científicos mostrando claramente que a restrição e a regulamentação do consumo do cigarro em lugares públicos têm um impacto claro no número de fumantes e de fumantes passivos. Isso está claro. Então, se você pergunta qual é a minha opinião: sou a favor.
Recentemente, o sr. tem constatado um aumento do número de jovens que começam a fumar?
Houve duas ondas. Teve uma fase onde os adolescentes fumavam uma barbaridade, realmente muito. Dez anos atrás começou a reduzir o número de fumantes novos adolescentes. De três anos pra cá, voltou a aumentar o número de fumantes adolescentes. Então, temos que voltar a focar a atenção nesse tipo de pessoas. Estamos começando a perder parte da batalha ganha nesse início da adolescência. Eu vejo sim muitos adolescentes no consultório com problemas. Não com câncer necessariamente, mas outros problemas pulmonares. Infelizmente, isso está voltando. E temos que estar muito atentos a isso.
Há motivos claros que justifiquem o aumento do fumo neste grupo?
Não está muito claro o porquê. Provavelmente são aspectos comportamentais dos jovens, que agora têm esses tipos novos de festas… Eles estão bebendo muito também. A sensação que dá é que talvez isso (bebida e festas) tenha algo a ver, mas comprovadamente não temos como falar isso. É um feeling meu de uma nova onda de drogas / álcool / tabagismo. No mesmo ambiente, a pessoa tem tudo isso.
Quais são as doenças com maior incidência entre os jovens?
A bronquite de longe é a mais recorrente. E alterações da voz, pneumonia… Essas são as causas mais comuns que levam os jovens (fumantes) ao médico. Para a gente jovem ainda não deu tempo de desenvolver câncer, infarto, derrame. Isso é uma coisa para pessoas que têm que ter fumado um pouco mais de tempo.
Quais grupos de pacientes representam a maior ocorrência de óbitos?
A relação com a idade é fundamental. Vou te dar um exemplo: qual é a incidência de mortes de gente com câncer no pulmão que fuma um maço de cigarros por dia por idade? A chance, a incidência de uma morte assim abaixo dos 50 anos é de 10 em cada 100.000. Aos 65 já temos 100 pessoas em 100.000 com câncer de pulmão por ano. Aos 75, isso pula para quase 300. A cada dez anos a mais de fumo, você aumenta drasticamente as chances. Aos 80 anos são quase 500 pessoas a cada 100.000. Isso significa cinco a cada mil pessoas. É muita gente, só com câncer de pulmão.
Tem casos que podem ser resolvidos por meio de operação?
Claro. O câncer de pulmão pode ser detectado precocemente e consegue, por operação, ser curado. Inclusive por radioterapia e quimioterapia. O problema é que a chance de cura não é tão gigantesca. Fumar é o maior matador por câncer do mundo. Tanto em homem quanto em mulher. É verdade que tem muito mais câncer de próstata que de mama, não em incidência, mas em mortalidade, só que o fumo afeta tanto homem quanto mulher.
O que o sr. vê quando abre esses pulmões? Qual é o aspecto?
O pulmão é tipicamente um pulmão que tem marcas pretas. Esse, digamos, pó preto do cigarro fica grudado dentro do pulmão. Fica tudo manchado de manchas pretas e normalmente o pulmão é cor-de-rosa. Fica tudo meio cinza, com manchas pretas, fica tudo bem feio. Além disso, as áreas com enfisema formam bolhas, ficam buracos, parece um queijo suíço com buracos dentro dele. Você olha e vê buracos no pulmão. São buracos irreversíveis. Quem tem enfisema tem, além desse aspecto feio, áreas que foram destruídas parcialmente.
Ouvi dizer que o cheiro que sai dos pulmões de um fumante crônico é algo horrível. É verdade?
A gente não fica cheirando pulmões. Todo mundo usa máscara e ninguém cheira nada. (risos)
Quais os riscos que uma gestante fumante traz para seu filho?
A mul
her fumante tem vários problemas específicos dela. As mulheres que fumam têm alterações até no ciclo menstrual. As dores do parto são piores, elas têm maior risco de retardar a gravidez. A mulher fumante é menos fértil que a não fumante. A mulher quando fuma durante a gravidez aumenta o risco de complicações do parto, as chances de parto prematuro, feto de baixo peso, e a mortalidade neonatal é muito maior em filhos de fumantes que em filhos de não fumantes. A mulher que fuma durante a gravidez afeta muito a evolução saudável de uma gravidez. Existe maior incidência de gravidez fora do útero em mulheres fumantes e o aborto espontâneo também é muito mais comum entre as fumantes. A mãe está pagando um preço caro e está fazendo o filho pagar um preço caro. Os filhos de pais fumantes também têm muito mais incidência de bronquite, asma.
Se a mãe conseguir interromper o hábito durante a gravidez, isso ajuda ou já não faz diferença?
Sim, ajuda.
Em relação a outros países, quão avançado está o Brasil no tratamento do câncer de pulmão e de outras doenças causadas pelo fumo?
No Brasil há centros de excelência que conseguem tratar como os melhores lugares do mundo. O Hospital Sírio-Libanês, por exemplo, tem capacidade de tratar o câncer de pulmão como os melhores hospitais do mundo. Mas, infelizmente, o Brasil não é o Sírio-Libanês. Vários outros postos de saúde, hospitais, têm acesso menor ou maior à tecnologia mais nova, a médicos mais especialistas e a medicamentos de ponta. O tratamento de câncer de pulmão no Brasil há de ser de uma excelência máxima, mas nem todo mundo tem acesso a isso. No Brasil, como na área cardíaca, há os melhores sistemas do mundo, mas apenas em alguns centros.