Ele é engraçado, generoso, capaz de ficar horas jogando conversa fora; radio amador apaixonado, percorre ferrovias e suas ruínas como se percorresse o caminho de Santiago de Compostela. Fotografa a beleza e a dor, come bolacha Maria amolecida no café (ou no café com leite) para fazer suas charges contundentes e faz algo que é de fato completamente libertário: o seu trabalho é copyleft, algo raro em um mundo regido pelo deus mercado. Se você não conhece o obra do dono desse sorriso, está perdendo uma produção ligada à melhor tradição de boas charges políticas do Brasil que tem grandes nomes como Belmonte e Henfil segue aqui o caminho das pedras:
Blog: Contos da guerra do IraqueSite: Lattuf 2Ferrovias do Brasil Ensaios IlustradosAlgumas fotos: Rotina de violência no Complexo do Alemão, 2007.
A Tita também reproduziu um artigo interessante e fez um book com muitas das charges do Latuff neste link aqui: Latuff- o traço-bomba
E para você ter uma idéia de como ele é incendiário, destaco um trecho de entrevista dada ao Fazendo Média logo após a censura pelo governo do Estado do Rio de Janeiro deste outdoor aqui:
O desenho censurado pelo governo Sérgio Cabral
Como foi que o seu desenho foi parar no outdoor aqui na cidade do Rio...
A princípio, eu e o Marcelo [Salles] conversamos muito sobre a produção de imagens que possam ser apropriadas pelo movimento social. Porque a intenção foi essa, a gente primeiro criou aquela imagem, discutiu e eu publiquei na internet e fiquei aguardando. A minha parte como produtor dessa imagem eu fiz, assumi o risco de fazer e assinar. Sempre quando produzo alguma coisa tenho esse pensamento de que esse desenho possa não ser circunscrito à internet ou a um jornal. Ele precisa ser copyleft [livre reprodução] e atingir um sem número de pessoas. Aí veio o representante do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e Adolescente e falou que estava pensando em fazer um outdoor e usar um desenho meu. Eu falei: ‘Cara, eu já tenho um desenho pronto. Se não for pra pegar pesado nessa questão eu não vou fazer. Se for pra desenhar pombinha da paz, criancinhas alegres eu não vou fazer’.
Por que não?
Porque é babaquice, é o Viva Rio [ONG Viva Rio] fincar cruzinhas na praia, balãozinho vermelho... Isso aí não quer dizer porra nenhuma! Porque com isso você pede paz, mas não diz quem causa a guerra. É um troço vazio. E ele me perguntou o que é pegar pesado. Eu respondi: ‘é mostrar uma criança baleada, vítima dessa política, é mostrar sangue, violência, mas dentro de um contexto diferente desse que você vê no Rambo, no Tropa de Elite, entendeu? Um contexto nosso, a realidade como é de fato.’ Aí ele falou para eu mandar o desenho. Eu mandei e não me responderam nada, pensei que o desenho tinha sido vetado.
É bom dizer o que tem no desenho...
É um policial diante de uma mãe negra abraçada a uma criança morta, também negra e baleada no peito. O garoto tem o uniforme de colégio e um caderno caído no chão. O policial está ao lado com um fuzil que acabou de atirar, ainda com a fumacinha no cano, no fundo tem uma favela e do outro lado tem um caveirão distribuindo tiro pra todo lado.
Então eles preferiram esse desenho à pombinha da paz...
É, me deixou satisfeito o Conselho ter a coragem de bancar o desenho. Aí gerou toda aquela polêmica, o artigo de O Globo cita como uma imagem polêmica. Mas por quê? A realidade não é polêmica, a imagem é que é polêmica. Quando você mostra, choca; estranho, né? É a lógica da sociedade hipócrita e doente; tem certas coisas que a gente sabe que existem, mas não pode externar, não pode colocar numa imagem e mostrar.
Acho que é por causa da linguagem que alcança mais gente e é isso que incomoda...
Mas aquela imagem na verdade não é uma criação literária.
Por isso é que incomoda e teve toda essa reação deles.
Pois é. Por que polêmico se é um troço que todo mundo sabe que rola? Lembra aquela propaganda do Sprite “imagem não é nada, sede é tudo”? É exatamente o contrário, a imagem é tudo, a sede não é nada. A verdade não é nada, a imagem é que machuca e era isso mesmo que eu queria.
Você acha que foi alvo de censura?
Isso pra mim não é novidade nenhuma, a história mais recente foi aquela da camisa do Cauê no Pan [personagem criado para ser mascote dos Jogos Panamericanos no Rio. Latuff desenhou uma versão do Cauê com um fuzil na mão, representando a violência policial, e recebeu a visita da polícia em sua casa para explicar o desenho]. Você tem o fascismo clássico, o racismo clássico. Nós aqui na mesa temos duas meninas negras que podem até falar muito bem disso. Se eu, por exemplo, morar no Tennessee, o cara vai chegar na lata e falar ‘negra, fuck you negra!’, mostrando a camisa com o emblema da Ku Klux Klan. Nos Estados Unidos o negócio é descarado, na lata. Na África do Sul já era política de estado, tinha aquela coisa de colored people. No Brasil é um racismo cordial. Dizem: ‘Eu não sou racista, eu tenho um amigo que é preto. Eu não sou homofóbico, eu tenho um amigo que é viado’.
Ou então você é moreninho...
Moreninho. Essas historinhas que na verdade mascaram o racismo objet
ivo, mas ninguém chega e fala “eu sou racista”. O fascismo é assim também no Brasil, é cordial. Claro, se for na favela é diferente, é pé na porta e o caralho. Agora esse caso do outdoor, como foi feito por um Conselho do Estado e o cara que estava à frente é um desembargador [Siro Darlan] as coisas se resolvem na base do telefonema. Se fosse um regime fascista clássico, tacava fogo no outdoor, invadia a empresa e dava porrada em todo mundo. Aqui eles não vão entrar e quebrar tudo, eles dão um telefonema para o dono - como em Israel, quando colocaram no Centro de Mídia Independente uma ilustração minha, que era o Ariel Sharon fazendo a saudação nazista. A polícia não chutou a porta da empresa de internet, deu porrada em todo mundo e tirou o site do ar. O cara ligou para o dono e falou assim: ‘Se você não tirar o site do ar a gente te mata’. Aí as coisas se resolvem, sabe...
Leia a íntegra da entrevista no FAZENDO MÉDIA