Enviei o texto de Fátima de Oliveira, publicado no dia que o STF retomou a votação pela legalidade da pesquisa com células troncos para a jornalista Conceição Lemes, grande profissional que com o seu trabalho ajudou a esclarecer a população brasileira o que é, porque é importante e que forças estavam envolvidas na tentativa de impedir as pesquisas com células-tronco embrionárias. O texto foi parar em uma lista da REBIA e veio-me uma resposta educada de uma pessoa que punha em xeque a validade das pesquisas e eu resolvi responder.
O que os leitores verão aqui na seguinte ordem é: o texto de Fátima que provocou o debate, a resposta a ele pelo debatedor Afonso do Carmo e minha resposta ao debatedor.
Aproveito para comemorar com todos aqui que se posicionaram a favor das pesquisas, que assinaram a petição online aberta pela jornalista Conceição Lemes e que em seus blogs, na conversa com os amigos, nos mails que mandaram às autoridades, enfim que em suas ações não se calaram diante de uma tentativa de controle religioso nas decisões do Estado laico.
Comemoremos, mas também nos preparemos para uma batalha ainda mais dura que será travada quando a discussão em pauta for a descriminalização do aborto.
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Visões teocráticas enclausuram as biociências no Brasil
FÁTIMA OLIVEIRA 27/05/08
É verdade. Em ciência, promessa é a regra
Em 30.5.2005, o então procurador-geral da República Cláudio Fonteles protocolou no Supremo Tribunal Federal (STF) uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin nº 3.510-0), na qual insta o STF a considerar inconstitucional o disposto na Lei de Biossegurança referente a pesquisas em células-tronco embrionárias. Os argumentos do então procurador, uma obra-prima de abuso de poder, alicerçada na fé vaticanista para enclausurar a biociência nacional, diz apenas uma coisa: o então procurador, declarado católico, não teve senso em declarar que lava as mãos para a democracia quando é para impor a vontade de sua grei em leis laicas. Mas qual é o dispositivo legal questionado na Adin?
O art. 5º e parágrafos da lei nº 11.105, de 24.3.2005, que diz: "É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições: I. sejam embriões inviáveis; ou II. sejam embriões congelados há três anos ou mais, na data de publicação desta lei, ou que, já congelados na data da publicação desta lei, depois de completarem três anos, contados a partir da data de congelamento. § 1º. Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores. § 2º. Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisas ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética e pesquisa. § 3º. É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da lei nº 9.434, de 4.2.1997".
Em 5 de março passado, data do julgamento final, após os votos, pela improcedência da Adin, do ministro Carlos Brito e da ministra Ellen Gracie, o ministro Carlos Alberto Menezes Direito pediu "vistas". Enquanto o STF não "bate o martelo" sobre a constitucionalidade da matéria, cientistas brasileiros não pesquisam em células-tronco embrionárias em solo nacional, submissos aos ditames de uma fé com ar de verdade única que reverencia a intocabilidade de embriões cujo destino é o lixo. Atrás dos panos, há o desejo confesso de mandar nos corpos das mulheres! Como o tempo não pára, perdem a ciência brasileira e a sociedade.
Falamos de embriões humanos destinados ao lixo, mas que podem servir à ciência, com o consentimento de quem lhes deu origem! Nada a ver com "fazendas de embriões"! Ademais, não há contradição em pesquisar células-troncos oriundas de embriões humanos, de humanos adultos, do cordão umbilical e do líquido amniótico, pois todas são ainda rotas de pesquisas não estabelecidas em plenitude. É engodo dizer qual a melhor sem que se saiba bem onde cada uma nos levará.
Sempre que a ciência estaciona ou se atrasa, as perdas sociais são de grande vulto. Alegam que falamos de promessas. É verdade. Em ciência, promessa não é crime, é a regra. A história da ciência é pródiga em demonstrar que, fora um acaso aqui e outro acolá, o desenvolvimento científico decorre de hipóteses que apostam em possibilidades. A discussão de fundo, que tem sido escamoteada, é a exigência de um contrato social e ético que as pesquisas das biociências, desde as rotas, se pautem pela ética e não pela fé; e opositores do progresso científico se estribem no respeito à ética condizente e necessária à ciência do seu tempo e não em oratórios do fundamentalismo e visões teocráticas de Estado, adornados do desejo de emparedar as biociências e cercear liberdades democráticas.
Publicado em: 27/05/2008 no site de Mhario Lincoln
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Sobre as pesquisas com células embrionárias - o outro lado da moeda
É inquietante perceber que estamos vivendo num tempo de grandes paradoxos.
Num mesmo país, enquanto a comunidade científica briga pelo direito de utilizar o que há de mais moderno em tecnologia para pesquisas com células-tronco, dezenas de pessoas morrem em hospitais superlotados por conta de um mísero inseto. A tecnologia de ponta da pós-modernidade, lado a lado com a obscura Idade Média.
Por outro lado, as pessoas que sofrem de doenças degenerativas, que poderiam ser curadas pelos resultados dessas pesquisas, parecem acreditar que em se começando os trabalhos de pesquisa neste ano, no próximo estarão curadas.
Em 17/04/08, na reunião do Conselho Nacional de Saúde (CNS), dos 39 participantes, apenas Zilda Arns, como representante da CNBB, votou contra a aprovação das pesquisas. Argumentou que as pessoas doentes não estão devidamente esclarecidas de que os resultados das pesquisas não são imediatos.
Um rapaz cego apressou-se em contra-argumentar afirmando que não esperava a cura para si, mas para as gerações futuras.
Não é difícil imaginar o mal-estar que tal declaração gerou e a situação incômoda de D. Zilda, solitária diante de todos, sendo a única a defender uma posição contrária à do grupo. É claro que isso não diminuiu, de modo algum, o mérito de tudo que esta extraordinária mulher já fez de bom e de útil no sentido de minimizar o sofrimento alheio.
O que incomoda, entretanto, é o fato de não se perceber que a declaração daquele rapaz, sem dúvida cheia de boas intenções e revestida do mais nobre altruísmo, carrega consigo um grande erro histórico. Somos, por natureza e pela educação, inconseqüentes. É muito cômodo para qualquer um de nós projetarmos um futuro no qual não seremos protagonistas. Se as coisas derem errado e fugirem ao controle, não estaremos lá para arcar com as conseqüências. Nossos antepassados, imaginado um futuro melhor para nós, deixaram-nos alguns monstros com os quais temos hoje que lidar, tais como o aquecimento global, o fantasma bélico-nuclear, o risco de extinção da espécie. São os efeitos colaterais da sociedade tecnológica, que nunca objetivou nada além do bem estar da humanidade.
O que mais se vê em toda essa questão das pesquisas com células embrionárias parece ser que o mérito da disputa, o confronto de posições, passa a ser mais importante do que a própria coisa em si e seus objetivos. Parece, pois, ser mais um jogo de poder do que uma questão humanitária. Se assim não fosse, por que é que nas altas rodas intelectuais, nos espaços acadêmicos e nas esferas governamentais, ao invés de se gastar tanto discurso com a questão, não se buscam soluções efetivas para outros milhões de desesperados? Gente que morre quase à míngua nas condições exíguas dos hospitais públicos, nas filas do SUS, na miséria, na falta de infra-estrutura, de saneamento básico e de condições mínimas para uma existência decente e digna?
Não são, pois, apenas embriões inutilizados que vão para o lixo. Pessoas, seres humanos - experimentos únicos e conclusos da natureza - também vão para o lixo.
A Idade Média ficou conhecida como a “idade das trevas”, a era do obscurantismo.
O filósofo René Descartes redimiu a espécie humana da escuridão, trazendo-a para a luz, estabelecendo as regras para o uso do intelecto. Mostrou-lhe o Método pelo qual a sua incrível capacidade para pensar deveria ser utilizada. Sobre este método foi estruturado tudo o que ocorreu nos quase 400 anos posteriores, até os dias atuais.
Todavia, o mecanicismo cartesiano nos torna, de certo modo, incapazes de enxergar o mundo como um sistema probabilístico, um fluxo gigantesco e permanente de causas e efeitos, nem sempre previsível. Aprendemos na escola a lidar com sistemas determinísticos. Por isso nossas mentes são estruturadas e limitadas à crença de que podemos vaticinar o futuro de forma absolutamente segura. Mas a realidade que nos cerca é formada por sistemas probabilísticos, onde a maior parte das conseqüências é imprevisível.
Penso que quando os defensores das pesquisas argumentam com o risco do retorno ao obscurantismo medieval, deveriam deixar também estabelecido o que se entende por luz e até que ponto a espécie está preparada para ela. A energia atômica pode ser usada para produzir a luz: da lâmpada ou da bomba.
Fala-se, por exemplo, da Ética na medicina. Mas o que é que entendemos por Ética? Será ético os preços extorsivos dos medicamentos e dos tratamentos de saúde, que invariavelmente nos coloca diante da inexorável lógica: quem pode pagar sobrevive, quem não pode, morre? Os avanços são, sem dúvida, significativos, mas somente uma classe privilegiada pode pagar por eles. Neste caso, nem devemos perder nosso precioso tempo debatendo Ética. A Ética não admite meios termos. Não existe meia Ética. A rigor, nos tempos atuais a ética não vai além de um conceito vago e ilustrativo, sem qualquer finalidade prática.
É óbvio que o conhecimento é o primeiro passo para se vencer o obscurantismo, mas é também um grave engano acreditar que todo o conhecimento disponível, que os cursos de mestrados, doutorados, MBAs, por si apenas, possam eliminar do homem o seu macaco primordial. Em via de regra, o conhecimento tem sido utilizado apenas como mais um meio de se ganhar mais dinheiro e fama, e de mergulhar ainda mais o mundo na desgraça, em suas inumeráveis e, às vezes, imperceptíveis formas.
Tem-se também argumentado com o tal Estado laico. No mérito das religiões não nos cabe aqui entrar. Mas independentemente delas, imaginar que o universo que nos cerca, inclusive a vida que nos permeia, possa ser obra do puro acaso, equivale a negar também qualquer outro princípio de Inteligência e Razão cósmicas, inclusive a nossa própria. A capacidade da razão humana permaneceria assim limitada a uma perspectiva que nunca iria além dos nossos próprios umbigos. O que, de qualquer modo, nos levaria de volta à ignorância secular, em sua forma mais elegante e requintada: a ignorância do saber.
Essa racionalidade pragmática e utilitarista pode não nos permitir compreender que a mesma luz que ilumina pode ofuscar, e nos conduzir de volta ao outro lado, ao lado mais traiçoeiro e perigoso do mais absoluto dos breus.
O respeito incondicional à vida é devido, não porque a entendamos e a possamos explicar nos limites da razão. É justamente porque não a compreendemos. Sequer sabemos ainda defini-la...
Afonso Sebastião do Carmo
28/05/08********************
Caro Afonso, não faço parte das listas, portanto não posso responder sua mensagem publicamente, mas eu creio que embora sua carta seja bastante articulada vc se esquece de pontuar um aspecto que para mim é crucial, destaco um trecho de sua fala:"O que mais se vê em toda essa questão das pesquisas com células embrionárias parece ser que o mérito da disputa, o confronto de posições, passa a ser mais importante do que a própria coisa em si e seus objetivos. Parece, pois, ser mais um jogo de poder do que uma questão humanitária. Se assim não fosse, por que é que nas altas rodas intelectuais, nos espaços acadêmicos e nas esferas governamentais, ao invés de se gastar tanto discurso com a questão, não se buscam soluções efetivas para outros milhões de desesperados? Gente que morre quase à míngua nas condições exíguas dos hosp
itais públicos, nas filas do SUS, na miséria, na falta de infra-estrutura, de saneamento básico e de condições mínimas para uma existência decente e digna?"
Creio que neste trecho de fato há sim uma disputa, mas é uma disputa entre os que estão de fato envolvidos com a melhoria da saúde pública neste país (vc já leu o livro da dr. Fátima de Oliveira sobre a saúde da população negra no Brasil publicado pela OMS?), contra não apenas aqueles que colocam seus valores religiosos acima de uma decisão constitucional, ferindo as regras democráticas, mas também se opõem a toda e qualquer inclusão.
Essa disputa não é feita no vácuo, e o sr Ives não é o advogado do lado católico só por coincidência, ele também é o advogado da ação de inconstitucionalidade do Prouni defendendo a causa das universidades privadas e do partido democratas, é ele o intelectual que escreve sistematicamente sobre toda e qualquer ação afirmativa porque se sente 'discriminado'.
É curioso que não se perceba esse agrupamento que poderíamos sintetizar em duas personalidades: de um lado uma médica negra e feminista, nascida no sertão nordestino e que superou todos os obstáculos para exercer seu ofício e que todos os dias, apesar de sua comprovada competência, tem de enfrentar os inúmeros preconceitos para exercitar sua profissão e para lutar, por exemplo, para diminuir o vergonhoso índice de mortalidade materna que ceifa especialmente a vida das mulheres negras pobres em nosso país e de outro um homem branco, bem-nascido que sistematicamente defende os seus interesses e o de sua classe, vendendo esta defesa como se fosse a dos interesses da nação.
Atenciosamente
Conceição Oliveira