A feminilidade como déficit

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ensaio:MEDICINA

Por Maria Cristina Franco Ferraz

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Na era dos hormônios, a menopausa deixa de ser vista como etapa natural e passa a ser tratada como doença

Em 15 de abril deste ano, os jornais a “Folha de S. Paulo” e o espanhol “El Mundo” divulgaram uma curiosa pesquisa realizada pela universidade de Cambridge: certos hormônios estariam por trás da tomada de decisões em bolsas de valores, exercendo portanto grande influência sobre a economia mundial.

Um deles, a testosterona, estaria ligado à auto-confiança e à competitividade; outro, o cortisol, exerceria um importante papel nas respostas a situações de estresse e de incerteza. A pesquisa constatou, por exemplo, que níveis mais altos de testosterona em operadores da bolsa de Londres, verificados no início do pregão, levaram a um dia mais produtivo e bem sucedido. Seu excesso, entretanto, à irracionalidade na tomada de decisões e à tendência nociva de correr riscos extremos. Esses esteróides seriam, portanto, uma espécie de “substrato biológico” para os mercados de ações.

Como se pode observar, tendemos atualmente a associar todas as esferas da vida, até mesmo as frenéticas operações do mercado de ações, aos hormônios que circulam em nossos “corpos elétricos” –como já caracterizava, desde o século XIX, o poeta americano Walt Whitman. Nossos prazeres, sucessos, fracassos, incômodos e tensões são crescentemente atribuídos a hormônios que atuam no cérebro, tais como os chamados hormônios do estresse, a endorfina e a serotonina.

Aos poucos, estes termos científicos vão penetrando no vocabulário mais cotidiano. Não é incomum ouvirmos dizer, por exemplo, que malhar libera endorfina, provocando uma agradável sensação de prazer e de bem-estar. Essa nova ênfase atinge, atualmente, tanto homens quanto mulheres, mas é sobre as mulheres que ela tende a recair de modo mais evidente e disseminado.

Isso não ocorre por acaso. Em nossa cultura, a mulher sempre foi mais marcada como gênero e especialmente caracterizada por sua curiosa anatomia. No século XXI, a experiência subjetiva da mulher passa a ser relacionada (por ela mesma, inclusive) cada vez mais à modulação de seus níveis hormonais. Agora, ao que tudo indica, vai saindo de cena a equação mulher-útero, que marcou a modernidade, para dar lugar à associação contemporânea mulher-hormônio.

No livro “Memória”wrt_note()1, o neurocientista Iván Izquierdo explica que a oxitocina, principal hormônio ligado ao parto e às contrações uterinas, afeta neurônios da amígdala, provocando certo efeito amnésico. Segundo alguns neurocientistas, esse hormônio que atua sobre o cérebro seria responsável pelo próprio esquecimento da dor do parto. Ou seja: não seria a rica experiência da maternidade (ou qualquer outro fator de cunho existencial) que faria esquecer a dor do parto, mas a ação da oxitocina sobre os neurônios.

Não se trata nesse caso, como pode parecer à primeira vista, da mera tradução científica do que antes ingenuamente se atribuía à esfera da experiência humana. Trata-se de um novo modo de se pensar e de se experimentar as relações entre o corpo e a subjetividade.

Como a ciência funciona hoje como lugar praticamente exclusivo de produção de verdades, tendemos por isso a acreditar que a oxitocina seria a causa finalmente descoberta do intrigante esquecimento da dor do parto. Talvez valha a pena, entretanto, seguir uma outra pista. Não para explicar esse suposto fenômeno, mas para refletir sobre o que esse tipo de explicação sugere e supõe.

Suspeitando nietzscheanamente das verdades como produções históricas, podemos identificar nessa maneira “fisicalista” de explicar a experiência vivida um dos traços marcantes da cultura contemporânea.

No caso específico da mulher, a tendência a reduzir a experiência aos hormônios parece apontar para uma nova maneira de se entender a feminilidade, que reforça certos valores e termina por estabelecer novos modos de se auto-descrever. Cabe então pensar algumas implicações filosóficas, éticas e culturais dessa visada.

Do século XVIII até mais da metade do século XX, a vida da mulher estava vinculada principalmente às funções de seu útero. Como ressaltou Michel Foucaultwrt_note()2, em sua face positiva, destacava-se a figura socialmente ajustada da mãe.

O reverso negativo e patológico da mulher-mãe se evidenciava na figura da mulher “nervosa”, configurada na virada do século XIX ao XX como “histérica”. Não se pode esquecer a importância da noção de histeria para a constituição do próprio campo da psicanálise. Cabe também lembrar que o termo “histeria” é, em grego, etimologicamente ligado a útero. É essa associação predominante mulher-útero, historicamente determinada, que parece ter se alterado a partir da segunda metade do século passado.

Marcando essa mudança, nos anos 60, Robert Wilson divulgou e promoveu intensamente a terapia de reposição hormonal para todas as mulheres, “da menopausa ao túmulo”. O título de seu best-seller de 1966, “Feminine Forever” (Para sempre feminina), lembra curiosamente certos lemas publicitários para a venda de produtos cosméticos.

A terapia de reposição hormonal, a partir de então maciçamente difundida, apóia-se no pressuposto de que o declínio da produção de estrogêneo na menopausa acarreta um progressivo processo de desfeminização.

Feminilidade é tendencialmente reduzida a um efeito de processos hormonais, passando a ser radicalmente anexada ao campo da medicina. Além disso, a menopausa deixa de ser encarada como uma etapa natural no processo de envelhecimento do corpo da mulher. Associa-se à doença, por meio da expressiva noção de “déficit”.

Aliás, o próprio envelhecimento já tangencia o patológico, o que aponta para um dos temores que mais assombram nossa cultura: o horror aos efeitos devastadores da passagem do tempo sobre nossos corpos e cérebros, que devem se manter sempre “fit”, saudáveis, ativos e produtivos (termos praticamente equivalentes).

Obviamente, essa equação mulher-hormônio representa uma grande oportunidade para negócios altamente lucrativos, tanto no campo da medicina mais ortodoxa (terapia de reposição hormonal, por exemplo) quanto nas vias mais alternativas (uso de substâncias fitoterápicas, suplementos vitamínicos etc.).

Como a diminuição hormonal na menopausa atinge mulheres de todas as raças, camadas sociais e continentes, a totalidade das mulheres de meia-idade se transforma em um vasto grupo potencial de tratamento médico ou alternativo. Aquilo que a natureza deixa de produzir como por uma espécie de equívoco se transforma em um imenso nicho de mercado para a poderosa indústria farmacêutica.

A noção de “déf icit”, significativamente extraída do campo da economia, sugere que o estrogêneo deveria continuar a ser produzido pelo corpo da mulher até o final de sua vida. Nesse sentido, ter diminuída sua produção representa uma falha a ser minimizada. Notícia bastante alarmante, em uma época em que a saúde se espetaculariza na superfície dos corpos e se espelha na imagem corporal, afetando a tão proclamada auto-estima.

O declínio do estrogêneo tende então a ser vivido de modo muito mais angustiado, alimentando a demanda por soluções medicamentosas ou alternativas, uma vez que afeta a própria feminilidade, remetida tão-somente ao corpo biológico e à imagem de si.

A terapia de reposição hormonal é uma das expressões da lógica do risco que impera em nossa cultura: nesse caso, riscos de osteoporose e de futuras doenças cardiovasculares. Esses riscos de doenças futuras teriam de ser prevenidos desde sempre, ao longo de toda a vida. Idealmente, mesmo antes do nascimento. Essa mentalidade não se restringe ao caso da menopausa, mas se estende às diversas áreas da vida contemporânea. A ênfase na noção de risco também move, por exemplo, projetos de pesquisa genética.

Como acaba de ser divulgado, o recente Projeto Genoma 1000 pretende mapear e catalogar o DNA de mil indivíduos de todas as raças e continentes. Esses catálogos servirão para rastrear e identificar predisposições para certas anomalias e doenças. Ou seja: estar doente é cada vez mais antecipado, solicitando vigilância e atenção permanentes, ao longo de toda a vida, estendida à etapa intra-uterina.

Na lógica do risco, estamos todos virtualmente doentes (e deficitários), do útero ao túmulo. Somos instados a dedicar nosso tempo prevenindo o que certamente está por vir -a menos que não cheguemos a viver até lá. Um dos efeitos dessa crença é, obviamente, a crescente medicalização do corpo tanto de homens quanto de mulheres.

A pesquisadora australiana Jennifer Hardingwrt_note()3 observa que embora diversas feministas tenham polemizado sobre os possíveis malefícios (e riscos) da controversa terapia de reposição hormonal e proposto alternativas não medicamentosas (mudança de estilo de vida, caminhadas, “fitness”), elas não deixaram de endossar os pressupostos implicados na terapia de reposição hormonal.

Eis, em síntese, alguns deles: a lógica do risco; a desvalorização do envelhecimento, cada vez mais associado a um estado meramente deficitário, a uma dependência onerosa em todos os sentidos (material e afetivo); a perspectiva de manutenção a todo preço de uma saúde intimamente vinculada à jovialidade e à produtividade; a visão da menopausa como doença ou risco de doenças futuras e, sobretudo, a equação feminilidade/hormônio.

Um dos valores embutidos nessa equação diz respeito à relação entre feminilidade e imagem do corpo jovem, saudável, preferencialmente pouco adiposo. A lógica da produtividade, da performance bem-sucedida e do curtíssimo prazo, própria às empresas, parece se estender a todos os domínios da vida.

Na cultura da performance e da descartabilidade, passa a ser praticamente impossível atribuir valor ao enriquecimento da experiência humana ao longo de uma vida. Nesse contexto, o envelhecimento só pode ser vivido como deficitário e angustiante. Por outro lado, a debilitação do corpo e seu eventual adoecimento tendem a ser experimentados como pesados ônus a serem pagos pelos indivíduos, pelas famílias e pela sociedade.

Essa cultura da prevenção e da seguridade contra riscos embute a idéia de que temos o dever de nos precavermos contra doenças, como se pudéssemos controlar através de nossas escolhas e comportamentos todos os seus vetores. Se formos bons cidadãos, sujeitos moralmente decentes, devemos nos responsabilizar não apenas pelos hábitos que poderiam levar à doença, mas também pela preocupação permanente com a produção da própria saúde. Quem não cuida bem de si, bom sujeito não é: eis o lema implícito em muitas de nossas práticas.

Ora, no caso das mulheres com poder aquisitivo suficiente para “cuidarem de si”, esse cuidado implica manter-se saudavelmente ativa e ser feminina “forever”. O problema, nesse caso, se agrava, pois como a menopausa ocorre relativamente cedo em uma vida que tende a se estender muito além da meia-idade, os cuidados terão de ser intensificados, e a vigilância, reforçada.

A equação feminildade/hormônio alcança igualmente outras etapas de vida da mulher. Esse é o caso das populares TPMs, levadas até mesmo em conta em julgamentos de crimes, na condição de circunstâncias atenuantes.

Um artigo no jornal “O Globo”wrt_note()4 intitulado “O país da TPM”, informa que uma pesquisa realizada pela Universidade Estadual de Campinas e pelo Centro de Pesquisa em Saúde Reprodutiva de Campinas revela que 80% das brasileiras entrevistadas são ou foram afetadas pela “Síndrome Disfórica Pré-Menstrual”, comprovando o enraizamento desse modo de lidar com a própria experiência do corpo e de seus afetos.

Nesse caso, podemos salientar que a própria situação da pesquisa, ao colocar o entrevistado diante de perguntas a que deve responder, também colabora para a consolidação de crenças. Pois, como mostraram filósofos, estudiosos da linguagem e da comunicação, ser confrontado a perguntas e respondê-las tem por efeito anexar o sujeito falante a certos horizontes de sentidos.

De nervosa e histérica, a mulher passa a ser mero efeito (sempre instável) de seus hormônios. Evidentemente, essa equação tende a desinvestir o sujeito de sua potência transformadora de mundo e de si. Aliás, o tema do cuidado de si, eticamente tratado por Michel Foucault, foi parcialmente apropriado (à revelia de sua filosofia) pela cultura da performance e da imagem de si. Nessa cultura, o que parece estar em questão é sentir-se bem a todo custo, regulando o corpo e seus hormônios pelo ritmo e pelo compasso adequados a uma gestão otimizada da vida.

Como a curiosa noção de “auto-estima”, cada vez mais ligada à saúde e ao bem-estar, está relacionada à imagem de si, a menopausa se apresenta como um fenômeno orgânico que ameaça a própria felicidade das mulheres.

Em vez de se alistar nessa batalha inglória contra o tempo, resta identificar e questionar esses valores e –por que não?- inventar outros. Afinal, nosso mundo não parece carecer de mais egos hiperinflados, de imagens plásticas e saradas do corpo.

Nesse sentido, vale a pena reativar o tema do “amor ao mundo” (Hannah Arendt) ou o da “fidelidade à Terra” (Friedrich Nietzsche). Talvez no lugar da auto-estima, resta propor (e efetuar) algo tão raro que nem sequer se encontra expresso: a alter-estima, uma espécie de conversão da estima em direção ao outro.


Publicado em 19/4/2008 <!--[XBIO]

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1 - Cf. Izquierdo, Iván, “Memória” (Artmed, 2002), p. 66. 2 - Cf. Foucault, Michel, “História da Sexualidade I” (Graal, 1980), p. 99.

3 - Cf. Harding, Jennifer. “Bodies at Risk: Sex, Surveillance and Hormone Replacement Therapy’’. In: PETERSEN, A. e BUNTON, R. (orgs.). “Foucault, Health and Medicine” (Routledge, 2000).4 - “O Globo’’ de 06/04/2008, sessão “Saúde”, p. 44.



Maria Cristina Franco Ferraz

É doutora em filosofia (Paris I-Sorbonne), professora titular de Teoria da Comunicação da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autora de "Nietzsche, o Bufão dos Deuses", "Platão: As Artimanhas do Fingimento" e "Nove Variações Sobre Temas Nietzschianos" (todos pela Relume Dumará), entre outros. É também organizadora da coleção "Conexões", da editora Relume Dumará.