********************
AMÉRICA LATINA DÁ UMA "SAPATADA" NOS EUA: IMPRENSA "DÉMODÉ" NÃO QUER ENXERGAR
(Rodrigo Vianna)
sexta-feira, 19 de dezembro de 2008 às 10:06
O que você acha de jornalistas que usam a expressão "démodé" para se referir a algo fora de moda?
Pra mim, é como chamar vocalista de "crooner", e banda de "conjunto". Ou, então, tratar médio-volante de "center-half" - como costumava dizer meu avô ao lembrar as escalações do Palestra Itália nos anos 40.
Aquela jornalista (Eliane C.) que escreve na página 2 da "Folha" resolveu classificar de "lero-lero demodé" as críticas que Venezuela e Bolívia costumam fazer a Washington. Isso bem na semana em que a América Latina resolve dar uma "sapatada" definitiva em dois séculos de doutrina Monroe - aquela que pregava "América para os americanos" (do norte).
(Aliás, a "Folha" tá ficando a cara do "Estadão" de três décadas atrás. Quando comecei a ler jornal, lá pelos anos 70, o "Estadão" trazia artigos que pareciam escritos por padres do século XIX. Uma desconexão absoluta com a linguagem e os temas cotidianos.)
Agora, a "Folha" tem uma colunista (?) que usa esse tipo de expressão para se referir aos países vizinhos que, legitimamente, procuram sair da órbita dos Estados Unidos: "lero-lero démodé".
Mas, eu entendo a colunista. Ela deve estar se sentindo órfã (mais ou menos como o Alan Greenspan quando descobriu que a auto-regulamentação não era suficiente para conter os mercados). O mundo em que Eliane C e quase toda a imprensa brasileira acreditavam ruiu nos últimos meses.
Como se não bastasse a quebra de bancos e empresas que passaram anos mandando a gente fazer a "lição-de casa" liberal, agora os Estados Unidos levam "sapatada" até no velho quintal da América Latina.
Esta semana, nos primeiros dias de cobertura em Salvador, a chamada "grande imprensa" brasileira tratou o histórico encontro de chefes de Estado na Bahia como se fosse um estranho festival esquerdista, sem objetivo nenhum.
Um dos principais jornais brasileiros chegou a destacar declaração do secretário-geral da OEA (Organização dos Estados Americanos), José Miguel Insulza, que decretava com ceticismo: o encontro da Bahia não pode ser comparado com uma reunião da OEA, porque esta última é uma instituição formal enquanto o encontro é algo sem regras definidas.
A frase de Insulza e a cobertura inicial dos principais (?) jornais brasileiros davam a impressão de que o encontro capitaneado por Lula não tinha importância alguma, a não ser pelas boas fotos do brasileiro ao lado de Raul Castro.
Miopia completa. O encontro marcou uma virada sem precedentes na política das Américas.
A hegemonia dos Estados Unidos nas Américas foi rompida. Morreu de morte matada. A OEA, coitada, vai ficar "démodé" - como o Greenspan, o Bush, a General Motors e (se continuar desse jeito) a própria "Folha".
Líderes de 33 países lançaram oficialmente a OEALC - que reúne todos os países das Américas, com exceção de Canadá e EUA.
Se na OEA Cuba não entra (por pressão dos EUA), na nova OEALC a ilha governada por Raul Castro terá lugar garantido.
Mas, esse é apenas o aspecto simbólico. Na prática, a América do Sul prepara-se para ter estratégia própria de defesa, sem ingerência de Washington. Estratégia própria de comércio e de desenvolvimento. Deixamos de ser colônias. Isso é muito mais importante do que a eleição do Obama, que emocionou tanta gente por aí.
O Brasil - com Lula e Celso Amorim - ajudou a costurar o novo desenho político das Américas. Retornamos, assim, à melhor tradição de independência e arrojo na política externa, marcas do Itamaraty.
Durante o governo FHC, este país aceitou tirar os sapatos para os Estados Unidos. Agora, voltamos à velha trilha de autonomia diplomática.
Aliás, Almino Affonso relembra hoje, num importante artigo também na "Folha", as cartas escritas por John Kennedy a João Goulart, em 1962, pedindo que o Brasil ajudasse os EUA a invadir Cuba durante a chamada crise dos mísseis (quando a União Soviética tentou instalar armas poderosas na ilha de Fidel).
Jango, claro, deu a resposta altiva e digna que se esperava: negou apoio para uma intervenção em Cuba. Seria derrubado dois anos depois, com apoio de Washington.
Durante o regime militar que se seguiu , aceitamos o papel de satélites de Washington (excetuando-se alguns momentos durante o governo Geisel).
FHC caiu no colo de Clinton, que foi quem evitou a quebra do Brasil quando os tucanos mantiveram o câmbio fixo até o limite da irresponsabilidade em 1998 - tudo pra garantir a reeleição.
No momento em que a era Bush termina com uma sapatada do repórter iraquiano, os Estados Unidos levam uma bela "sapatada" na Bahia. Desferida com classe, sem arroubos "démodé", mas mesmo assim trata-se de uma "sapatada" incontestável.
No mesmo dia, aliás, a Câmara dos Deputados do Brasil (com votos contrários dos tucanos, claro) aprovou a entrada da Venezuela no Mercosul.
Algo se moveu no Continente.
Eliane C. e tantos outros preferem não enxergar. É uma gente completamente "démodé", eu diria.
Mas, tenho que parar de escrever pra ouvir uma fita de meu "crooner" predileto.