No vídeo que destaco logo abaixo, retirado do blog do cantor baiano, sua metanarrativa desvela seus equívocos de modo muito deselegante. Seu recado é para o cineasta negro Joel Zito Araújo que escreveu e filmou "A negação do Brasil" e para todos os brasileiros que entendem raça como um conceito sociológico.
Na verdade eu não consigo conceber como uma pessoa ilustrada, educada não consegue se aproximar da compreensão e legitimidade da luta pela afirmação da negritude e da construção de sua positividade e, principalmente, como uma arma eficiente de combate à discriminação e exclusão em uma sociedade tão racista como a nossa.
Mas como diria minha mãe: 'inteligência do coração' não se adquire apenas em bancos escolares. Há seres com desenvolvimento cognitivo refinado e nem sempre tiveram a chance de escolarização, da exploração do mundo, de conhecer o deserto de Sonora.
Por isso, para mim, é incompreensível a postura politicamente retrógrada e cínica de Caetano. Ele teve educação, teve chances de explorar o mundo, de conviver com a nata do pensamento brasileiro, de trocar figurinhas globais mas, principalmente, de absorver e reelaborar o inferno do racismo cordial à brasileira. Caetano compôs Haiti!
Da fundação casa de Jorge Amado
Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos e outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos)
E aos quase brancos pobres como pretos
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados
E não importa se os olhos do mundo inteiro
Possam estar por um momento voltados para o largo
Onde os escravos eram castigados
E hoje um batuque um batuque
Com a pureza de meninos uniformizados de escola secundária
Em dia de parada
E a grandeza épica de um povo em formação
Nos atrai, nos deslumbra e estimula
Não importa nada:
Nem o traço do sobrado
Nem a lente do fantástico,
Nem o disco de Paul Simon
Ninguém, ninguém é cidadão."
Haiti – Caetano Veloso)
Nesta apresentação, Caetano diz-nos que desejamos ser como os estadunidenses que almejamos ser 'americanizados', que queremos discutir racismo, quando nem Obama discute. Obama, neste contexto, é escolhido como a ressignificação da biopolítica na era pós-racial.
Caetano não percebe que o discurso racial de Obama durante a campanha é o discurso de um candidato negro em um país com uma história de profundas raízes segregacionistas. Caetano não leu a biografia de Barack Obama, lá ele não põe em dúvida sua negritude e a reafirma com muita freqüência e veemência. Caetano não entende que é possível reafirmar a negritude explodindo com o discurso manco do universalismo sem no entanto cair em extremos segregacionistas.
Caetano usa do cinismo, é vero que existem inteligentes cínicos, mas esse exibicionismo caetanista, agressivo, sem propósito, ao enxergar o termo negro como algo politicamente incorreto, ao tripudiar das idéias de Joel Zito a meu ver só pode ser explicado astrologicamente: Caetano acredita que o 'leãozinho' tem de brilhar, então dana-se a criar polêmicas.
Meu amigo Guellwaar (que chamou a minha atenção para este vídeo) lembrou-me também que não é a toa que Bial define Obama como 'mulato', reforçando a mensagem subliminar "não se alegrem tanto, ele nem tão preto assim é, vejam: a mãe branca dele"
Eu não acho que Obama será o salvador do planeta, mas é uma tacanhice ímpar não reconhecer o inedetismo desta vitória na presidência dos EUA. É uma cegueira ideológica não reconhecê-lo como negro e não compreender e respeitar o que sua vitória simboliza para todas as pessoas negras do mundo.
Entre os milhões de voluntários negros e brancos que o apoiaram em sua campanha, não foi gratuita a escolha de Ann Nixon Cooper por Obama em seu discurso de vitória para exemplificar as mudanças que os EUA passaram e os preconceitos superados:
"Estas eleições contaram com muitos inícios e muitas histórias que serão contadas durante séculos. Mas uma que tenho em mente esta noite é a de uma mulher que votou em Atlanta.Ela se parece muito com outros que fizeram fila para fazer com que sua voz seja ouvida nestas eleições, exceto por uma coisa: Ann Nixon Cooper tem 106 anos.
Nasceu apenas uma geração depois da escravidão, em uma era em que não havia automóveis nas estradas nem aviões nos céus, quando alguém como ela não podia votar por dois motivos - por ser mulher e pela cor de sua pele.
Esta noite penso em tudo o que ela viu durante seu século nos EUA - a desolação e a esperança, a luta e o progresso, às vezes em que nos disseram que não podíamos e as pessoas que se esforçaram para continuar em frente com esta crença americana: Podemos.
Em uma época em que as vozes das mulheres foram silenciadas e suas esperanças descartadas, ela sobreviveu para vê-las serem erguidas, expressarem-se e estenderem a mão para votar. Podemos.
Quando havia desespero e uma depressão ao longo do país, ela viu como uma nação conquistou o próprio medo com uma nova proposta, novos empregos e um novo sentido de propósitos comuns. Podemos.
Quando as bombas caíram sobre nosso porto e a tirania ameaçou ao mundo, ela estava ali para testemunhar como uma geração respondeu com grandeza e a democracia foi salva. Podemos.
Ela estava lá pelos ônibus de Montgomery, pelas mangueiras de irrigação em Birmingham, por uma ponte em Selma e por um pregador de Atlanta que disse a um povo: "Superaremos". Podemos.
O homem chegou à lua, um muro caiu em Berlim e um mundo se interligou através de nossa ciência e imaginação. E este ano, nestas eleições, ela tocou uma tela com o dedo e votou, porque após 106 anos nos EUA, durante os melhores e piores tempos, ela sabe como os EUA podem mudar. Podemos.
EUA avançamos muito. Vimos muito. Mas há muito mais por fazer.
Portanto, esta noite vamos nos perguntar se nossos filhos viverão para ver o próximo século, se minhas filhas terão tanta sorte para viver tanto tempo quanto Ann Nixon Cooper, que mudança virá? Que progresso faremos?"
Os EUA com todas as suas contradições tiveram a coragem de eleger um presidente negro. E nós, que progresso faremos? Continuaremos a fingir que somos uma democracia racial e nunca encararemos o racismo de frente? Diante de toda e qualquer conquista da população deste país a mesma elite embranquecida buscará rapidamente mudar as regras do jogo?
Caetano, irônico, diz que todos os nossos presidentes foram negros (com exceção de Ernesto Beckmann Geisel). De fato até a década de 1930 antes da migração estrangeira massiva, homens não brancos tinham mais espaço politicamente.
Tivemos até alguns presidentes escuros de pele, com o cabelo encaracolado, os lábios mais grossos, mas nem eles, nem seus pares os consideraram negros.
A negritude também passa pela identidade, pelo auto-reconhecimento. Mas o nosso racismo não liga para esses pormenores: ele atira e depois pergunta, ele segrega na calada da noite, ele veta os bancos das universidades e os altos cargos executivos, ele mata pela ausência de políticas públicas na saúde, ele esconde o rosto negro da televisão ou quando o mostra, representa-o sempre nos velhos e estereotipados moldes, ele se revela nos argumentos cínicos dos 113 cidadãos com os quais Caetano se filia e quer brilhar. Ele se revela até mesmo na tentativa de branquear Obama, abrasileirá-lo no velho e cínico argumento da miscigenação.