Faz muito tempo que não tenho tempo de parar e escrever uma croniqueta, hoje não resisti e saiu Zilá, originalmente eu a publiquei aqui. Mas se me empolgar muito com o Puxadinho recém reabitado, é possível que deixe de lado o Maria fro.
Voltar a escrever coisas diferentes da luta ou de história, escrever por escrever sem compromisso, sem dead line, muito possivelmente é culpa do recente reencontro de quase uma centena de poetas e escritores que aos poucos estou conseguindo reunir aqui
Então, vamos lá, sem mais delongas, Zilá pra vocês:
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Zilá
Os cronistas costumam usar uma linguagem cheia de metáforas ao falarem de empregadas domésticas, especialmente quando falam de suas próprias: ‘minha secretária’ é uma das expressões mais usuais deles.
Acho hipocrisia da grossa. Nosso país é herdeiro do sistema de trabalho e de produção mais hediondo inventado pela humanidade. Foram mais de 350 anos de sistema escravista, período em que se comprava trabalhadores em mercados, depois de seqüestrá-los em sua terra natal e lucrarem desde a travessia d’além mar.
Deixemos de eufemismos, empregada doméstica na profusão em que existem e tão mal remuneradas, só em nosso país.
Fiquei um ano e meio sem empregada doméstica com dois cachorros cagões e vomitões e uma filha pouco acostumada a se virar. Acordava de madrugada pra fazer comida, lavar corredor cheio de merda, passar um pano na casa e tocar toda a infinidade de trabalho intelectual que tinha pelo dia, tudo dead line.
Dead line ficou a minha vida. Quase enlouqueci, quando a filha, mais uma vez, quebrou-se, enfaixou-se toda e foi parar em uma cadeira de rodas pouco ágil para quem vive em um sobrado de escadaria estreitíssima. Impossível sobreviver sem ajuda.
Contratei Ana, meu braço direito, responsável por não deixar minha casa virar república do tempo de estudante, por me impedir e à filha de comermos um monte de bobagens e tornarmo-nos umas gordas adoecidas. Infelizmente não posso remunerar Ana como ela merecia, mas procuro não ser a patroa que odiaria ter.
Conheci Zilá, indicada, por Ana, ela veio cobrir as férias de Ana e as minhas supostas e naufragadas férias. Cobrir em termos, pois sua função era restrita e bem precisa: fazer sobreviver em minha ausência, como eu mesma faço as minhas duas fábricas de dejetos.
Zilá é diarista e sonha com emprego com carteira assinada, enquanto ele não vem, ela se vira como pode. Aliás, nem sempre. Zilá tem esse aspecto adorável pra quem já teve experiência sindicalista: ela não aceita qualquer coisa não, mesmo na precisão. Impõe grandes limites à exploração de sua força de trabalho, negocia do jeito que dá e, muitas vezes, diz não. Depois se arrepende, mas isso é outra coisa.
Quanto a mim, não consigo ficar muito tempo afastada de casa devido à existência dos produtores de bosta e urina.
Li recentemente e sem muita vontade, Marley & eu e não consegui estabelecer uma empatia sequer com seu autor. Jamais teria um Marley, aquilo não era um cachorro, era um desastre ambulante que dominava dois energúmenos da classe média estadunidense com tempo dinheiro e paciência pra aturar aquele labrador dos infernos.
Sim, sou uma péssima dona de cachorros e não suporto quem trata cachorro ou qualquer outro bicho como se fosse gente. Simplesmente não consigo respeitar os seres humanos que se enquadram na categoria pai/mãe de cachorro ou gato.
Como dona dos caninos cagões, faço o básico do básico: dou ração, troco a água, limpo a sujeira, dou de vez em quando um banho, vacino quando lembro e se a coisa apertar levo ao veterinário, reclamando do gasto.
Não passeio com meus cães. Sei, nisso reconheço que extrapolo e que já estou na lista criminosa das sociedades protetoras de animais. Já me culpei bastante (não precisam me crucificar mais), mas não tenho ânimo nem pra me levar pra passear.
Zilá, então, precisaria fazer o mínimo do básico: recolher as fezes, mangueirar uma área de corredor onde eu confino os meus pobres produtores de merda, urina e pêlos, trocar a água e abastecer os comedouros de ração. Poderia vir o horário que desse, nada que mudasse sua rotina de diarista ou atrapalhasse sua luta por um companheiro.
No ato de passar as chaves do portão e mostrar onde estavam os apetrechos para a tarefa, ela começa a negociar preços. Negocia daqui, espreme dali, sou convencida de que essa tarefa é chatérrima e que ela estava certa. Bato o martelo e fechamos.
Minhas férias não duraram uma semana, voltei às pressas pra casa, pra correr atrás do pão nosso de cada dia. Zilá disse-me peremptória: ah! mas nós combinamos tal preço e tantos dias, com a senhora aqui ou não, eu vou ganhar o meu dinheiro.
Achei justo e havia alguma coisa em Zilá que me dizia que ela ainda daria uma crônica.
Ela não é uma mulher bonita, quem a vê de longe, de costas, quem não olha para o seu rosto sofrido, poderia até se enganar. Seu corpo frágil e pequeno é bem feito, musculoso, moldado no trabalho duro, s hape que as peruas e patricinhas suam muito nas academias, sem grande sucesso, para alcançar.
Cada dia que ela vem, fila uma bóia. Diarista sofre tanto como profissionais autônomos, que desenvolvem trabalhos supostamente valorizados socialmente como o meu. Nos meses de dezembro, janeiro, até o carnaval os cidadãos com alguma qualidade de vida conseguem viajar, dão um break e o trabalho escasseia. Durante a bóia filada, ora café da manhã, ora almoço, ela me conta uma história.
História de patroas que mereciam o paredón, mas se fosse relatá-las voltaríamos ao intróito desta história e à sabedoria negociadora desenvolvida por Zilá. Prefiro falar de sua luta por um amor.
Zilá conseguiu de mim nesta batalha constante onde gasta as mesmas energias para conseguir uma carteira assinada, a empatia imediata que John Grosgan e seu fiel e retardado labrador, Marley não conseguiram.
Zilá com seu corpo maravilhoso e sua face sofrida também quer um amor. Vive sofrendo por amor. Impressionante como as mulheres fortes e lutadoras feito ela, ainda não aprenderam a lidar com cafajestes. Nesse ponto eu tenho alguma vantagem, sei identificar um mau-caráter, desocupado, perdido e loser a quilômetros de bytes.
Mas Zilá tenta em vão conquistar seu homem. Dia desses contou-me que na balada conheceu um sujeito boa pinta que lhe pediu uma sunga para o carnaval. Ela foi na C&A fazer crediário para um biquíni e sunga e depois do feito topa com o cabra no forró ‘ficando’ com outra.
Saiu do prumo, a Zilá. Disse ao malandro pedinte poucas e boas e distribuiu desaforos até para a infeliz ficável.
Eu sorri com a história e a alertei que não deveria gastar seu suado dinheirinho com homens pidões. Conselho machista a rigor, falei que mulheres como ela deveriam ser presenteadas e, no máximo, ela poderia trocar presentes em datas magnas: Valentine’s day; natal.... Ela disse que ia tentar, mas que de todo modo voltaria na C&A para trocar a sunga por outro biquíni. Menos mal.
Hoje, conversávamos sobre filhos, eu feliz de ter a minha retornando e já pensando como vou administrar a carência da Mamá, afastada um mês da mãe, ao mesmo tempo em que terei de dar conta do dead line de uma edição chatérrima. Ela contando-me como entregou seus gêmeos à adoção. Espantei-me. Zilá não tem cara de mãe desnaturada.
Grávida, abandonada muito menina no interior de um município impronunciável do Ceará, Zilá, com pré-eclampsia, deu à luz a dois meninos com seis meses de gestação: eles na uti/ incubadora para sobreviver, ela na uti em coma.
Quando lúcida, assinou os papéis e duas médicas do hospital adotaram as crianças. Perguntei se ela sabia deles, se queria conhecê-los, por que não chamou o pai das crianças ou deixou que a mãe dela cuidasse....
Ela mais pragmática que na negociação para cuidar dos meus dois produtores de dejetos explica: com minha mãe eles teriam morrido, o pai dos moleques casou-se obrigado com uma menina de treze anos que ele também engravidou, eu estava entre a vida e a morte, nasci de novo. Fiz o certo, era a melhor chance que dava a eles para sobreviverem.
Ela não sabe se os meninos se salvaram ou não. Em caso afirmativo, hoje eles têm oito anos. Zilá quer saber deles e os procurará quando conseguir voltar à sua terra. Comovida com sua história, tive certeza de que não era mãe desnaturada.
Vida longa aos meninos e tomara que um dia eles saibam que, às vezes, amar significa abrir mão.
Esse ano, a Frô, vida nova, queria que as Zilás ganhassem melhor, com carteira assinada, divertissem no forró e encontrassem amores que as merecessem.
(Frô, 25/01/2008)