Reproduzo dois artigos que se tornaram um debate entre Leandro Narloch e Nei Lopes.
Nei Lopes deu uma resposta à altura, mas faltou dizer algo que cada vez fica mais claro para mim em relação às polêmicas das cotas: existe um medo absurdo da academia (sem generalizar, porque tem gente dentro dela fazendo reforma de dentro), DIANTE DE MUNDANÇAS.
Lembremos que enquanto instituição Moderna, as universidades brasileiras, filhas de um contexto profundamente elitista e autoritário, (as de Medicina e Direito nasceram no auge das teorias raciais e dos projetos de embranquecimento da raça); (as de ciências humanas em contexto Getulista); carregam um ranço que marca e a define como instituição classista. Por isso o medo de novas representações sobre a África, seus povos e os contextos da Diáspora.
O que vemos neste debate do carnaval e também no das cotas é, sem dúvida alguma, um luta de poder pela produção do conhecimento.
Essa luta e o medo de perdê-la fica evidente para mim, quando o mesmo jornalista não faz a análise da produção de interpretação histórica de outras temáticas.
Vejamos: uma das escolas contou o desenvolvimento da fotografia de modo teleológico, com uma visão de progresso tecnológico da história profundamente questionado na academia. Por que ela não foi alvo de críticas?
Por que a mesma visão idealizada, parcial e de pouca complexidade sobre os aspectos técnicos e sociais da história da fotografia não foram motivo de críticas? E, ao contrário, as representações africanas o foram?
Porque a mera possibilidade da construção negra de novas representações que ponham em jogo o conhecimento enciclopédico nascido também em um contexto datado de fins do XVIII e XIX representam a possibilidade da construção de novas identidades para combater um sistema de domínio de longa duração que é o racismo, a meu ver um substituto à altura do domínio senhorial/paternalismo em tempos patriarcais.
Vocês já imaginaram o que será quando todas as crianças negras forem educadas de modo a perceberem como se dá a produção das desigualdades de classe, gênero e étnico-raciais? Onde será encontrada mão-de-obra barata e destituída para dar continuidade à submissão que possibilita a contínua exploração e produção de desigualdades?
Fiquem com os dois artigos e ao final deles a justificativa da Beija-Flor e o comentário do meu querido amigo, o antropólogo Wal Rosa.
HOMENAGEAR A ÁFRICA É ERRADO?
LEANDRO NARLOCH (Editor da Revista Superinteressante) Homenagear a África está na moda. Louvar reis africanos, como provou a Beija-Flor neste Carnaval, rende graves notas 10 na Quarta-Feira de Cinzas. Mesmo que, para isso, seja preciso mudar a história, calar os historiadores e contar velhas mentiras politicamente corretas sobre a escravidão.
A África foi tema de três escolas do Grupo Especial do Rio neste ano. Todas - Porto da Pedra, Beija-Flor e Salgueiro- ocultaram verdades que doem.
Nos enredos, os africanos são sempre os heróis libertadores que contrariam uma ordem opressora. Os brancos fazem o papel de Odete Roitman do caso - os vilões que pela força oprimiram o continente. Uma escola menor, a Unidos de Cosmos, chegou ao preconceito às avessas com o samba-enredo "Sou Cosmos 100% Negro, da Abolição aos Dias Atuais". E o samba-enredo campeão, "África: do Berço Real à Corte Brasiliana", canta assim:
"Oh! Majestade negra, Oh! Mãe da liberdade, África: o baobá da vida Ilê Ifé, Áfricas: realidade e realeza, axé".
Será que entendi direito? Estariam os autores do samba chamando a África de "mãe da liberdade"? Será que eles não sabem que o tráfico de escravos começou muito antes de os europeus chegarem lá, que a escravidão foi extremamente lucrativa para reis africanos e que foram eles os que mais se debateram contra a abolição?
Eram negros africanos os homens que atacavam povos no interior da África, capturavam escravos, matavam fugitivos, construíam forquilhas para prender vários negros pelo pescoço, organizavam caravanas em fila indiana que duravam meses, marcavam a ferro incandescente as iniciais do comprador ("acima do umbigo ou sob o seio esquerdo", como descreveu Pierre Verger) e negociavam preços para os escravos. Também eram africanos vários colegas de europeus nos navios tumbeiros, traficantes riquíssimos e até compradores, já que escravos eram essenciais nas fazendas africanas. Fazendas que, como observa o historiador Alberto da Costa e Silva, "pertenciam ao rei e aos grandes do Daomé e se baseavam num tipo de trabalho escravo que pouco diferia do americano em dureza e crueldade".
Seria essa a "luz que vem do Daomé" que o samba da Beija-Flor homenageia? Não se trata de preconceito com africanos.
Ao contrário. Preconceito é crer que nações africanas eram tribos coitadinhas e que não estavam sujeitas, como europeus, aos costumes do seu tempo.
É bom saber que a Beija-Flor não caiu na vitimologia barata, comum em letras de rap, e preferiu enaltecer a riqueza da África. Só faltou dizer a origem dessa riqueza: a escravidão. Por que as escolas de samba contam apenas metade da história da África? Por que nenhuma delas homenageia a luz que veio da Inglaterra, sem a qual até hoje os africanos achariam OK comprar gente?
Em vez disso, a Beija-Flor preferiu louvar reis que traficavam escravos e que, quando depostos, foram escravizados e mandados ao Brasil. Aqui, esses reis geraram descendentes. É provável que amanhã, no desfile da campeã Beija-Flor, eles estejam na Sapucaí louvando antigos traficantes de escravos e reclamando das maldades cometidas só pelos... europeus.
Não é apenas a Beija-Flor: todos mentem sobre a real África
NEI LOPES* em resposta a Leandro Narloch ESPECIAL PARA A FOLHA
PEÇO LICENÇA aos leitores para concordar com o artigo do sr. Leandro Narloch "A Beija-Flor mente sobre a África", publicado na edição da última sexta-feira da Folha. Concordo com ele, pois as escolas de samba cariocas, sacrificando a verdade histórica em benefício do espetáculo, têm fantasiado bastante a respeito do continente africano, ainda visto como "distante", "misterioso", "impenetrável" etc., e quase sempre mostrado como um corpo homogêneo e não como um todo multiétnico e multicultural. E digo mais: não foi só a Beija-Flor que mentiu. Mentiu a Salgueiro, quando juntou às candaces de Méroe, cuja experiência se desenvolveu entre o século 4 a.C. e o primeiro da Era Cristã, figuras femininas como as de Nefertite e Makeda, a rainha de Sabá, que viveram em épocas mais remotas, bem como a de Cleópatra, mais grega que negra. Mentiu a Porto da Pedra quando, cantando a África do Sul, disse que "o anjo invasor" deu a cor ao país. Mas, com todo o respeito, o sr. Narloch também mentiu um bocadinho em seu artigo. Falseou ele a verdade histórica -inclusive sobre a cidade hauçá e muçulmana de Kano, no norte da atual Nigéria, por ele localizada na antiga Costa do Ouro- não distinguindo o tráfico de escravos praticado na África antes da chegada dos europeus, exercido principalmente por árabes e direcionado para o Oriente e a Europa, com aquele que se desenvolveu através do Atlântico. E tudo isso usando a velha tática de colocar na conta dos negro-africanos toda a responsabilidade por esses tristes eventos. É certo que tanto o tráfico europeu, pelo vulto econômico que adquiriu, quanto o tráfico árabe contaram, a partir de um certo momento, com a efetiva colaboração de africanos de vários segmentos sociais, desde monarcas a simples transportadores. Havia, sim, mercados de aldeias que dispensavam os traficantes estrangeiros das perigosas incursões continente adentro. Mas a participação africana no tráfico de escravos não diminui a responsabilidade dos europeus. Foram eles que corromperam soberanos e súditos, inclusive fornecendo armamentos, para tornar esse tipo de comércio altamente rentável e tentador. Entre 1580 e 1680, período em que duraram as chamadas guerras angolanas, envolvendo, principalmente, Portugal, Holanda e os ambundos da rainha Nzinga Mbandi, estima-se que cerca de um milhão de cativos foram vendidos de Angola para as Américas. Da mesma forma, nas guerras entre axantis e fantis, na atual Gana, no início do século 19, com participação inglesa; e também nas refregas entre iorubanos e daomeanos, a partir do século anterior. Todos esses acontecimentos foram motivadores de migrações forçadas de grandes contingentes de africanos para as Américas. Mas a aceitação passiva do tráfico de escravos e a participação nele não foi, como quis o sr. Narloch mostrar, regra geral entre os governantes africanos. Na década de 1730, por exemplo, o rei daomeano Agajá Trudô, entendendo que o tráfico era um obstáculo ao desenvolvimento de seu país, saqueou e queimou os fortes e armazéns de escravos e bloqueou o acesso às fontes do interior. Esse fato deu ensejo a uma retaliação por parte dos europeus, concretizada por uma espécie de bloqueio econômico, o que fez com que a atividade se restabelecesse. Mas, felizmente, está aí, em vigor a lei nº 10.639, instituindo o ensino obrigatório de história da África e das populações afro-brasileiras nos currículos de base no Brasil. Com ela, certamente, teremos, daqui a alguns carnavais, enredos mais verdadeiros. E comentários também.
*Nei Lopes é músico, escritor e estudioso autodidata das culturas africanas e afro-brasileiras A JUSTIFICATIVA DA BEIJA-FLOR SOBRE A ESCOLHA E A LEITURA DO TEMA
Celebrar a África é, acima de tudo, um momento de memória, o resgate da herança que vem reafirmar o nosso compromisso genético. É um instante precioso, de lembrança ao povo brasileiro mestiço, esse povo brasileiro que é também africano. É uma exaltação a todos que viveram o horror do cativeiro, mas que não deixaram aprisionar o espírito, a alma africana, a fibra que une o indivíduo à ancestralidade. O objetivo, porém, foge da narrativa do sofrimento vivido nas terras de escravidão; o avesso dessa história vem coroar a majestade africana. Falamos não apenas de uma África, este enredo faz emergir muitas Áfricas, cacos de um mesmo pote que na diáspora ocorrida nas travessias dos tumbeiros, vieram se espalhar pelo novo mundo e que nessas terras de exílio, os filhos e filhas da África-Mãe tiveram que colar, juntando fragmentos das suas e de outras Áfricas originárias, pincelando com tintas e vernizes dessa nova terra, criando assim novos potes, novas Áfricas. Assim como quartinhas, nelas foram guardando suas identidades tribais, suas crenças, costumes, lembranças, ferramentas da reconstrução de suas humanidades. Mostramos em desfile a África-Mãe e sua gênese, a realidade e a realeza e outras tantas Áfricas realizadas, onde, de uma forma ou de outra, existiram reis e príncipes, rainhas e princesas, de reinados e reisados, de cortes e cortejos. Por isso, a Beija-Flor que é, uma entre tantas outras pequenas Áfricas, vem tecer o fio da memória, evocando sua ancestralidade para unir dois mundos: - Á África real e a Corte Brasiliana. (www.beija-flor.com.br ). COMENTÁRIO DO AMIGO ANTROPÓLOGO WAL ROSA: Acho que tem mais "alemão"¹ desinformado no Samba. ¹ Alemão não se refere apenas a condição racial do entrevistado. No mundo do Rap e Funk Carioca alemão é utilizado para desiguinar os "inimigos" da comunidade. Asè, Wal.