O quarto de empregada e os bichos de estimação de meus vizinhos
Outro dia, sem mais o que fazer, fui observar o quarto de empregada construído em meu apartamento.
Aliás, parece que é politicamente correto no Brasil se referir às empregadas domésticas como secretárias.
O nome mudou, mas o quartinho continua o mesmo.
O de casa é um depósito de malas e outras quinquilharias.
Não tem janela.
E tem vista para a máquina de lavar.
Por que diabos fui observar o quarto de empregada?
Porque não muito antes eu tinha ouvido, no bairro onde moro, uma reclamação contra o Programa Bolsa Família.
Nos tempos de Fernando Henrique Cardoso, era um projeto social.
Mas agora, no newspeak adotado pela mídia brasileira, é um programa assistencialista. A reclamação ouvi de uma vizinha, abalada pela perspectiva de reeleição do presidente Lula.
Argumento dela?
A classe média paga impostos e o dinheiro é desviado para dar esmola.
Ela disse saber que muitas famílias do Nordeste recebem o Bolsa Família sem precisar.
Meses atrás, o programa que garante renda a uma família para que mantenha os filhos na escola era tido como revolucionário.
Mas em tempos eleitorais passou a ser criticado, principalmente depois que se descobriu que é uma grande fonte de votos para o presidente Lula.
Em minha opinião, os programas sociais do governo tem qualidades e defeitos.
É bem provável que haja quem receba o dinheiro sem precisar.
É preciso, portanto, investir na fiscalização.
É preciso, também, aperfeiçoar a porta de saída - ou seja, acompanhar a evolução de renda da família para que ela não permaneça eternamente dependente do dinheiro público.
De outra parte, ainda que lentamente, o Brasil começou a fazer algum tipo de distribuição de renda.
Além da ampliação dos programas sociais, o salário mínimo teve seu poder de compra reforçado.
Houve a ascensão de milhões de brasileiros da classe D para a C e da C para a B.
Ou alguém acredita que o sucesso das Casas Bahia se deve aos consumidores dos Jardins paulistanos?
A dinâmica do comércio no Nordeste mudou: mais dinheiro com as pessoas significou aumento de vendas, criação de empregos, dinamização da economia.
Mas e a minha vizinha, tem razão de reclamar?
O bairro onde moro, Higienópolis, na região central de São Paulo, tem uma superpopulação de bichos de estimação.
Cães parecidos com o maltês da foto acima.
Decidi visitar um petshop da região para verificar os preços do tratamento dos cãezinhos de madame.
Havia um vestidinho muito simpático, para cachorro, ao preço de 77 reais.
Uma bandeja para alimentos sai por 63 reais.
O banho e tosa, com direito a tratamento de VIB, very important bicho, sai por 52 reais.
E um saco de alimento para os bichinhos custa 54 reais.
Segundo a vendedora, a quantidade necessária para alimentar um cão pequeno, com comida de alta qualidade, fica em cerca de 100 reais mensais.
É o PF básico, sem mistura.
Não estamos nem falando num bicho mais sofisticado, como o da foto acima, que deve custar uma fortuna de manutenção.
Eu sou apaixonado por cães.
Tive um que me acompanhou por toda a infância e adolescência, o Bafo.
Mas não pude deixar de refletir sobre o Brasil, o país que ainda incorpora, à arquitetura de classe média, um quarto sem janela para o serviçal.
O Programa Bolsa Família (PBF) é um programa de transferência direta de renda com condicionalidades que beneficia famílias pobres (com renda mensal por pessoa de R$ 60,01 a R$ 120,00) e extremamente pobres (com renda mensal por pessoal de até R$ 60,00), diz o site do governo.
O programa, diga-se, começou no governo de Fernando Henrique Cardoso, do PSDB, e foi ampliado no de Lula, do PT - portanto não existe aqui qualquer partidarismo. Valor da contribuição?
Os valores pagos pelo Bolsa Família variam de R$ 15 a R$ 95, de acordo com a renda mensal por pessoa da família e o número de crianças.
No Brasil, país que tem a pior distribuição de renda do mundo, contribuintes reclamam do Bolsa Família enquanto gastam até duas vezes mais por mês para dar comida a seus animais domésticos.
É por isso que me orgulho tanto deste país.
[postado em 21 de outubro de 2006]
O quarto de empregada, bicho de estimação e o Bolsa Família
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Vale a pena ler este artigo, extraído do site do Azenha. Ah! se toda a classe média tivesse essa competência reflexiva para ler o mundo: