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Confira artigo de Josemeire Alves Pereira sobre a obra, que busca promover uma reflexão sobre racismo e genocídio da população negra
Por Josemeire Alves Pereira*
Cidinha da Silva participa do que podemos chamar de uma tradição de escritoras e escritores negrxs que, por meio de seu árduo e elaborado trabalho intelectual, representam uma importante frente de resistência e superação do racismo, no Brasil e nas diásporas.
Uma tradição que se desenvolve na história do país desde, pelo menos, o alvorecer do século XIX, por meio da ação de pessoas escravizadas ou livres “de cor” (libertas ou nascidas livres), que forjaram seu direito ao acesso às letras, consideradas distintivo privilégio das elites políticas e econômicas no Brasil, desde sempre.
Estas pessoas – até onde a história nos “revelou”, majoritariamente homens negros, muitos dos quais literatos, que participaram do surgimento da imprensa entre nós, publicando também jornais (periódicos) voltados à causa “dos homens de cor”, durante o século XIX e no alvorecer do século XX e que fizeram desta ação e da literatura instrumentos fundamentais de organização e luta pelo respeito à dignidade e cidadania das pessoas negras neste país.
Dentre estes, conhecemos Machado de Assis – o famoso escritor, representado até bem recentemente, como homem branco: para a branquitude, afinal, seu talento inconteste não poderia ser conferido a uma pessoa negra. Cronista de seu tempo, crítico da sociedade escravista e da condição das pessoas negras no chamado pós-abolição. Há também Lima Barreto, a quem não conseguiram/puderam branquear e cuja ascensão e reconhecimento buscaram a todo custo conter.
Na contemporaneidade, Oswaldo de Camargo, Abdias do Nascimento, Cuti, Eduardo de Almeida Pereira, Ricardo Aleixo... Dentre as mulheres negras, Maria Firmina dos Reis, Geni Guimarães, Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo com suas escrevivências poderosas, a dramaturga Grace Passô, o coletivo “Quilomboje” com seus “Cadernos Negros”...
Sobre estes intelectuais negrxs poderíamos afirmar: fazem da escrita, em certa medida, “escrevivência”. Ora, talvez alguém possa reiterar que aquelas e aqueles diretamente beneficiados pela branquitude também o fazem – no sentido, mesmo, de que mesmo a mais elaborada obra de ficção é fundamentada a partir do vivido, da observação e dos posicionamentos de quem a escreve –, ainda que não se o reconheça.
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Mas Conceição Evaristo evidencia e potencializa sua escrevivência, por meio da qual o vivido – em especial as memórias, em sua dinâmica própria e fluida, mas também as percepções e compreensões desse vivido – tudo isto é elaborado e oferecido ao mundo a partir da uma poderosa escrita literária, em seus mais distintos gêneros. É uma forma de inscrever-se no mundo, na história, a partir de nossos próprios termos, de nossa própria voz e olhar.
Começo a falar deste “#Paremdenosmatar!”, de Cidinha da Silva, a partir destas referências, porque parece-me importante dizer dos diálogos que a autora tece com o mundo, tal como o faz esta “comunidade” de escritoras e escritores negros brasileiros que, por mais distantes que estejam entre si, no tempo e no espaço, comungam vivências e lutas de ontem e de hoje, no ofício da escrita. Cidinha o faz de maneira singular, contudo, muito embora possa compartilhar de vivências similares à de mulheres como as que já aqui referenciamos.
Nestes seus 10 anos como escritora, ela nos apresentou textos já fundamentais pela qualidade literária e pela maneira como são apropriados, especialmente pela população negra, que neles se vê, que com eles elabora e reelabora continuamente sua identidade e sua relação com um mundo mediado pelo racismo.
A amplitude e diversidade do público de leitores que a obra de Cidinha alcança, bem como as estratégias de que lança mão a escritora para dialogar com este público, é um fenômeno que talvez a singularize entre estes seus pares. E isto é um dado que, a despeito de todo o quadro perverso do racismo explicitado pela própria recepção de sua obra, precisa ser celebrado porque é, ao mesmo tempo, sinal da força da resistência cotidiana destas pessoas e dos coletivos.
Tenho como referência algo dito pela autora, há alguns anos, sobre realizar-se por meio da literatura, de sua escolha e dedicação por se tornar escritora – uma escritora “afro-centrada”. A este respeito, lembro-me da expectativa e de uma certa inquietação – que alguns de nós compartilhávamos, talvez sem saber, com o que Sueli Carneiro diz no Prefácio de #Paremdenosmatar! – acerca do “risco” de “perdermos” uma importante ativista das lutas pelos direitos humanos, de combate ao racismo.
Aqui, abro um pequeno parêntese para contar que conheci Cidinha, aqui no Morro, mesmo – mais precisamente, na Barragem Santa Lúcia, em alguma programação da Gincana do (grupo de jovens) JUBA ou da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania, no final da década de 1990. Ela nos foi apresentada pelo Hamilton Borges, do Movimento Negro Unificado, importante parceiro nosso, à época.
Então, quando li a primeira edição do “Cada Tridente em Seu Lugar!”, que ela lançou também na Barragem em 2006, minha alma “respirou” agradecida e emocionada, pelo teor daquela escrita e também porque, então, percebi o poder daquilo que eu via como outra forma de luta: aquela que consegue mobilizar o que de mais profundamente humano e sagrado há em nós, que nos reconecta com este sagrado da sensibilidade, nos fortalecendo e alimentando nossa busca por respostas, por uma melhor forma de estar no mundo, de contribuir para que ele seja uma experiência de vida e não de mortes cotidianas.
“#Paremdenosmatar!”, nos alerta a autora, “é leitura densa que exige estômago e coragem. É um livro que exige mais do que o desgastado uso do termo “denúncia” para caracterizá-lo. Este #Paremdenosmatar! é testemunha de acusação do genocídio contemporâneo da população negra. É memória viva em transformação que se vale da crônica como suporte.”
De fato! Não foi fácil. Não é fácil lidar com a memória viva da crueldade manifesta na desumanização decorrente do racismo, que sustentou as chacinas praticadas por civis e, principalmente, pelo Estado, por meio do aparato policial, em especial, contra jovens negros no Brasil ou nas Africas.
Exige certa “força”, certo preparo emocional reviver a violência racista, homofóbica, misógina que cotidianamente nos mata, a cada hora, em um genocídio para o qual ninguém liga – porque “vidas negras não importam” (vidas negras faveladas menos ainda!), matar homossexuais e mulheres é algo natural, em uma sociedade que surge e se consolida fundamentada na prática sistemática da violência escravista da dominação senhorial e patriarcal.
Entre nós ainda é tragicamente forte a indiferença diante dos vários tipos de violência que historicamente nos privam do acesso às condições dignas de existência ou mesmo da mera existência.
Em contextos como o nosso, um livro como este “#Paremdenosmatar!” é um registro muito importante no exercício permanentemente necessário de entender a sociedade brasileira – o é, no presente e, por certo, o será no futuro. Importante, sobretudo, para se conhecer como operam e operaram os mecanismos do “racismo à brasileira”, com suas continuidades reatualizadas, se o olharmos em perspectiva histórica.
Uma história “do Brasil” ou qualquer interpretação produzida no âmbito das humanidades, num futuro próximo, que desconsidere a “agência” de intelectuais como Cidinha da Silva e sua produção literária, estará a padecer de sérios problemas éticos, no mínimo! A obra de Cidinha e este livro, em especial, são testemunhos importantes da intervenção de intelectuais negras e negros na cultura, confrontando radicalmente a biopolítica racista que fundamenta as relações sociais e de poder mantenedoras de desigualdades genocidas no Brasil.
A propósito deste aspecto, vale a pena observar atentamente a argúcia com que a autora disseca e desconstrói os precários, falaciosos, mas persistentes argumentos do então colunista da Revista Veja, Reinaldo Azevedo, contra o posicionamento da Ministra Luiza Bairros por ocasião dos “rolezinhos”, nos shoppings na crônica “Luiza Bairros e o vendilhão do templo” (p. 44).
É um livro que deve ser adotado na formação das juventudes, nas escolas nos mais diversos espaços de produção de conhecimento – inclusive, na formação acadêmica de professores e pesquisadores. Pois – uma vez mais –, não se justifica a perpetuação de interpretações “tradicionais” do Brasil, que desconsiderem uma obra como esta e a produção de intelectuais como Cidinha da Silva que, de maneira habilidosa e apurada, articula uma leitura do racismo por aqui e alhures em suas complexidades, a partir “de dentro”.
A singularidade do poder da “escrevivência” de Cidinha está, a meu ver, na capacidade da autora de manter a perspicácia do olhar para as coisas vividas e comunicá-las com a contundência necessária, para romper a naturalização das diversas formas de violência e injustiça sofridas pelas vítimas do racismo estrutural e estruturante da sociedade brasileira.
Para aquelas e aqueles a quem não é permitido sequer um respiro na condição de ter que estar sempre na defesa – porque a violência racista não dá trégua –, vejo este livro como mais um ato de solidariedade da autora, que se realiza oferecendo o mais autêntico de si ao mundo, na defesa inconteste da humanidade daqueles a quem esta humanidade é usurpada a cada minuto.
Porque, veja: é bastante corriqueiro passar por uma feira nas festas de São João em uma cidade nordestina ou Estação do Move [BRT] improvisada de Ribeirão das Neves, ou de Santa Luzia, ou de outra periferia qualquer neste país de desigualdades e se irritar por ter o trânsito de pedestres atrapalhado pelo afã de sobrevivência do sem número de trabalhadoras e trabalhadores informais, que por isto lhe tolhem o direito de ir e vir livremente.
É possível até que você consiga superar a irritação do momento e sinta pena ou uma doída indignação pela condição daquela trabalhadora negra. No entanto, ser solidário exige de nós, coragem para superar a fatalidade que imobiliza e alimenta a negligência.
A este respeito, na crônica “Sobre os que juntam vinténs na microeconomia do carnaval” (p. 40 e 41), Cidinha vale-se, como em todo o livro e em toda sua obra, da chamada “coragem da verdade” (expressão reabilitada, pelo filósofo Michel Foucault, dos gregos antigos), a serviço da justiça, e nos propõe desnaturalizar o olhar para uma situação que é considerada por muitos como natural e insuperável: a das mulheres invariavelmente negras e de todos os envolvidos na chamada “microeconomia” subproduto do carnaval de Salvador que explicita a profunda desvalorização da vida humana negra.
Termino agradecendo pela possibilidade de compartilhar deste momento, ao lado de duas mulheres admiráveis e que são, como muitas intelectuais e ativistas negras da contemporaneidade e do passado, referências de força, sensibilidade e generosidade para nossa geração (Áurea Carolina e Cidinha da Silva).
Proponho que nos lembremos deste momento como um ato em memória de Cláudia da Silva Ferreira e de todas e todos que foram abraçados pelas palavras amorosas de Cidinha em seu livro, dos jovens mortos pela violência no Aglomerado Santa Lúcia, recentemente e no passado, de “Luiz Carlos Ruas” – Índio, assassinado recentemente, de maneira brutal, covarde e diante de tantos olhares indiferentes, em uma estação do metrô de São Paulo, por defender uma mulher transexual! Por todos eles e elas exigimos: “Parem de nos matar!”
Que possamos viver num país em que isto não seja mais admitido. Por ninguém! Em nenhuma circunstância!
* Doutoranda em História Social na UNICAMP