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Na estreia de seu blog na Fórum, a escritora Cidinha da Silva comenta as críticas dirigidas a Raíssa Santana após entrevista em que teria afirmado não se ver como "representante da beleza negra", mas, sim, da "beleza da mulher"
Por Cidinha da Silva
Um recorte de entrevista de Raíssa Santana, Miss Brasil 2016, a um jornal da grande mídia sacudiu o mundinho das redes sociais. Ela teria afirmado que não se vê representante da beleza negra. Representaria, sim, a beleza da mulher.
Foi o bastante para ser apedrejada no tribunal da web por muita gente “cabeça”. Mas, o adágio popular “devagar com o andor que o santo é de barro” faz muito sentido na situação. Vejamos.
Primeiro, as comentadoras não analisaram a entrevista inteira. Fixaram-se no título, que, como sabemos, via qualquer análise primária da grande mídia, não tem o compromisso de sintetizar as idéias do texto. Pretende mesmo fisgar leitores pelo espanto, pelo choque, pelo estômago (raiva), pelo fígado (ira). E assim, produzir “debate”.
Segundo, tomaram como verdade absoluta o que é posto na boca da entrevistada, quando se sabe, muitas vezes por experiência própria, que as declarações dadas numa entrevista nem sempre são publicadas na integralidade.
As entrevistas e textos jornalísticos têm um tanto de mistura, de confusão entre respostas da entrevistada e interpretação feita pelos jornalistas, que tratam de apresentar as ideias entre aspas, ou seja, como fala genuína da entrevistada. Essa compreensão é básica para quem pretende ler a mídia criticamente.
Nesses casos polêmicos, cabe a pessoas formadas e tituladas pela universidade oferecer pelo menos o beneplácito da dúvida à entrevistada, ao invés de crucificá-la pós leitura da manchete do jornal.
Terceiro, ainda no diapasão da generosidade da dúvida, o racismo estrutural é mais capcioso do que o suposto racismo introjetado. Afirmo com isso que, uma pessoa negra em evidência, em qualquer campo de uma sociedade racista como a brasileira, é testada incessantemente. É posta em armadilhas, é cercada por pegadinhas, ora inteligentes, ora tacanhas. E a gente precisa ter reflexo e se defender sozinha e desarmada na mata escura, sem lanterna além do nosso amor próprio e instinto de sobrevivência.
Prefiro acreditar, então, que Raíssa Santana, de alguma forma, sentiu sua coroa de mais bela das belas do concurso de miss em risco e respondeu de pronto como a mais bela de todas, não só das negras. Eu a vejo, de fato, como igual e, como tratamos aqui de escolhas interpretativas, prefiro/consigo lê-la assim.
Raíssa fez o papel dela, ganhou o concurso, tornou-se referência por isso. Seu papel, de agora em diante, é preparar-se para conquistar o título universal. Não lhe cabe fazer ativismo político com a coroa do marketing da beleza. Não esperem isso da Miss Brasil negra.
Resta-lhe, ainda, a tarefa de sobreviver e se impor no mundo marketeiro que pouco menciona seu nome, Raíssa Santana. Ela era o objeto Miss Paraná e agora é o objeto Miss Brasil. Nada mais.
A ampliação de significados e sentidos de sua coroa será feita pelas pessoas que a consideram representante da beleza da mulher negra, ainda mais vinda de um estado considerado europeu e que dizem os plebiscitos de direita, apóia a ideia de criação de um estado separatista do Sul.
À pergunta “Você pretende ser porta-voz da causa negra”?, Raíssa Santana respondeu, segundo a matéria: “Sim. Quero e (sic) usar toda essa repercussão para ajudar meninas e mulheres a se aceitarem mais, a estar de bem com seu próprio corpo. Não apenas com o cabelo, mas também com seus traços negros”.
Tem um “e” entre os verbos querer (na primeira pessoa) e usar (no infinitivo) numa mostra evidente de edição ruim da matéria. É a primeira coisa a ser observada. Depois, os recursos lingüísticos de Raíssa Santana podem ser considerados simples e pouco refinados, quando contrapostos a uma gramática político-racial mais robusta, mas não estão incorretos. São a expressão de como as relações raciais estão postas no dia a dia das pessoas comuns.
Enfim, Raíssa Santana venceu um concurso de beleza e tem os atributos exigidos por essa modalidade de competição. Não foi exigência da disputa, formação consistente em Sociologia, História, Ciência Política ou análise de desigualdades raciais que a obrigasse a utilizar com desenvoltura o instrumental dessas ciências.
Ela mesma é estudante de marketing e qualquer midia training no Brasil ensina o ídolo negro a não falar sobre racismo, porque isso gera mídia negativa. Acho mesmo que o machismo, o racismo (seja estrutural, seja introjetado), o sexismo, que tanto criticamos nos concursos de beleza, estão mais arraigados em nós do que conseguimos admitir.