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Onde estão as mulheres negras na História do Brasil? Onde as ideias e vivências das companheiras de Machado de Assis, Luiz Gama e José do Patrocínio?
Na série “Agora é que são elas”, a historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto desafia versões oficiais e também as dissonantes, questionando a si mesma e as lacunas nas pesquisas sobre a imprensa abolicionista, as lutas negras e os escritores do século XIX.
AGORA É QUE SÃO ELAS, OU MELHOR, POR QUE O ANTES É O TEMPO DA AUSÊNCIA?!
Ana Flávia Magalhães Pinto*
E se em outros tempos, Luiz Gama tivesse saído de casa decidido a se valer do prestígio duramente alcançado para ver publicadas na Gazeta do Povo algumas ideias de Claudina Fortunata Sampaio, sua esposa?
Que percepção teríamos sobre a trajetória de José do Patrocínio, o filho do vigário João Carlos Monteiro e da liberta Justina Maria do Espírito Santo, que saiu de Campos dos Goitacazes para se tornar um aguerrido jornalista na Corte, se contados a partir do ponto de vista de sua mãe?
Ou ainda, seria mais fácil compreender os meandros da viabilidade de um Machado de Assis, se alguém tivesse se interessado pelo que Maria Inês da Silva, sua madrasta, tinha a dizer sobre as práticas de sobrevivência cotidiana daquele núcleo familiar?
Embora comumente invisibilizadas em seu tempo e na posteridade, mulheres negras sempre estiveram presentes nos espaços em que “homens de cor ilustres” e anônimos circularam. Mais do que coadjuvantes da vida masculina, elas, de um jeito ou de outro, protagonizaram os seus próprios destinos.
Todavia, se são ainda reais as dificuldades para acessar dados sobre sujeitos negros razoavelmente lembrados, como os três mencionados, o desafio de se chegar a detalhes sobre a vida de mulheres negras livres e libertas em tempos de escravidão é ainda maior. Isso sem falar da continuidade das investigações sobre as mulheres escravizadas.
Já se vão mais de quinze anos desde que comecei a aventura de buscar compreender os limites e as possibilidades da cidadania negra no século XIX a partir de reflexões registradas em páginas de jornais, memórias, cartas etc. Mesmo assim, não fossem os esforços de outras/os pesquisadoras/os condensados em obras como o livro Mulheres negras: no Brasil escravista e do pós-emancipação, organizado por Giovana Xavier, Juliana Barreto e Flávio Gomes, seria quase inviável ir além dos romances de Maria Firmina dos Reis e uma ou outra história sobre Chica da Silva, a atriz Joaquina Maria da Conceição da Lapa (Lapinha) e as musicistas Chiquinha Gonzaga e Cacilda de Souza. Sobre esta última, esposa do professor e médico negro Vicente de Souza, ainda não alcancei detalhes sobre o fenótipo, mas sei que tocou em diferentes conferências abolicionistas e também fora professora.
Seguem, pois, na ordem do dia pesquisas dispostas a ampliar o entendimento sobre, por exemplo, como mulheres negras livres se fizeram presentes em espaços majoritariamente ocupados por homens brancos e alguns negros, como os meetings políticos, teatros, conjuntos musicais, e por aí afora. Até porque não é mais razoável dizer que as mulheres ficavam presas em casa e não participavam da vida das cidades. E isso só pra ficar no século XIX.
Isso, porém, não me redime da ausência de personagens femininas em minhas próprias pesquisas, reclamada por mulheres de diferentes idades sempre que falo sobre os tais homens negros, livres, letrados e atuantes no cenário político oitocentista, de quem tenho me ocupado.
Ao mesmo tempo, penso que essas dívidas e ausências não são apenas questões minhas, como mulher negra, ou um traço do passado. A garantia de que mulheres negras possam amplamente se expressar em primeira pessoa é uma demanda que permanece na contemporaneidade, e isso envolve a nós, mulheres negras de hoje, numa dimensão coletiva.
É tranquilo dizer isso porque, desde que a expressão do pensamento de mulheres negras passou a ser incorporada aos “jornais da raça”, esses deram um salto de qualidade, tal como ocorreu no jornal Quilombo, com a coluna “Fala a Mulher”, redigida por Maria de Lurdes Vale Nascimento. Ou ainda, recentemente, com o surgimento do site Blogueiras Negras, que respondeu à falta de abertura de espaços com a criação de um espaço próprio.
De tal sorte, sem saber que impacto efetivo a campanha “Agora é que são elas!” terá nesse cenário da comunicação, ainda bem marcado pelas desigualdades de gênero e raça, acredito que teremos ao menos uma nova medida do quanto ainda temos que avançar. Bom será se formos capazes de promover as mudanças juntas e juntos.
* Natural de Planaltina-DF, Ana Flávia Magalhães Pinto é doutora em História, professora, jornalista e ativista do Movimento Negro. Autora do livro Imprensa Negra no Brasil do século XIX (Selo Negro, 2010) e responsável pelo blog Por falar em liberdade...
Foto de capa: Autoria de M. Campos. Reproduzido em Sud Mennucci. O precursor do abolicionismo no Brasil – Luiz Gama. Rio de Janeiro: Editora Nacional, 1938, p. 67