O barco

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Por Allan da Rosa (Pequenita fábula para minha cidade linda linda, São Paulo das mil águas que se blindou de asfalto e sufocou na fumaça. Em tempo de secura, a saliva cariada da cidade nem transborda, mas segue imundiça. Estórinha escrita aqui no fundo de casa, beira do córguinho fedorento que já foi cristalino)  O barco atracado no deserto fofo, esperava. Era um vasto terreno. Acenava suas velas às garrafas e sacolas que passavam lá distante, fossem miragens ou não, lááá pro córguinho que margeava seu banzo. O barco esperava. Seus remos inquietos se mexiam dentro do casco, teimosos, apinhados de memórias que chegavam das Águas cinzas que tão bem conheciam. O barco acochado na secura e na espera, a cada dia enfeitava a proa de esperanças e sentia a popa se quebrar um caquinho, um tiquinho a menos ele tinha na hora de dormir doente da paração. Assoviava código que só sua companheira Água cinza antes sabia decifrar. Ouvia chuás que animavam seu aguardo. Proseava sozinho, divagava: que era apenas um aperitivo  espera pro retorno da Água distante e que ela chegaria e o abraçaria em seu fluxo, rumando viagens. Ele murmurava devaneios. Não tinha mais papo com os remos, considerava-os muito temperamentais e não demorou pra cortarem relações. Mas pro barco memórias eram também um doloroso recurso. E enigmático. Imagens do seu entalhe infantil; da primeira vez que deitou na água e dos descansos na margem; dos barcos furando com carinho a pele da água; das contemplações do sulco que ele próprio deixara na água e que pareciam eternas tatuagens, mas que a Água ia remodelando pra seguir sem marcas. Lembrava dos téquinhos de tinta que nos rolês iam se dissolvendo, iam pro fundo do rio... e as cores se desmanchavam ou eram catadas pelas bocas dos peixes, que também eram a Água cinza. Depois lhe disseram que não havia peixes. É. Só que o barco esperava no deserto. E dispensava convites de oásis e açudes, de mercadores e religiosos, de vira-latas e dos moleques que iam lá lonjão buscar os pipas mandados cheios de linha. O barco agradecia, simpático. Ouvia recados, não distinguia se distantes ou se do próprio leito de si. Sopravam que a Água cinza apenas cumpria suas molhadas obrigações, que tratava suas líquidas formosuras, escorrências, que acolhia bueiro e sacão que chegavam. Mas o barco estava confiante que no Futuro, três ou quatro calendários pra frente, passearia inéditos oceanos. Um dia, observando formiguinhas sempre formiguinhas, o barco notou de leve, quase sem certeza, que perdera as características de barco: era agora casa, de pele áspera. Era agora poste, de pele áspera. Era cadeira, de assento frouxo. Era quase árvore novamente, sem folhas. Era quase bicho, sem toca nem comida nem acasalamento. Percebeu que a larga espera era também uma soltura fresca na zonzeira febril do deserto. ... Uma Ventania veio modelar as areias vaidosas, como todos os dias. O barco sacou o quanto a Ventania tinha de Água, fosse em brisa, em tufão, em movimento, em envolvimento. E o quanto a Ventania era única, soberana e incompleta. O barco se mostrou, anunciando suas beiradas. Aceitou o convite da Ventania e inventou-se nave. No ar: pássaro, pedra e pipa. Nuvem. Sol levado em rotação pela Ventania. Esquentando a Ventania. Às vezes, recordava a sua espera atracado. Um dia sobrevoou um mar. Reconheceu alguma sensação mas não soube falar o que, pra Ventania. Era o seu antigo deserto, agora oceânico. Talvez houvesse naufrágios e submarinos naquela agua, que se alternava em azul e cinza. Talvez houvesse as costumeiras latas ou aqueles peixes improváveis que usavam mascara de oxigênio. Talvez houvesse lodo no fundo. Não havia canoa, nem velha calçando bótônas de plástico pra atravessar o mar cinza. Não havia touceiras de matagais onde habitassem as ratazanas ligeiras e nem madeiras de palafita machucada. Não havia chiado, só imensidão de pele de agua. Cinza e às vezes azul, às vezes dourada... soltava um bafo morno, profundo em cansaço e beleza. Era então a Água que agora esperava. Foto de capa: Sivlio Diogo