Silêncio por silêncio. À memória de Cláudia Silva Ferreira

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Por Allan da Rosa, Muitos gritos. Uma chuva de berros. E silêncio por silêncio há o entalado na goela seca, o úmido explodido na face dos filhos de quem foi baleada de frente com um copo de café na mão, jogada no porta-malas da viatura, borrada do cotidiano, estropicada no chão da democracia militar brasileira, sumida da mão que acarinha. E há o que paira entre a respiração ofegante no treinamento da corporação que faz de pessoas, robôs, obcecados por humilhação e vala. O silêncio que voga nas pausas entre os hinos fascistas em honra do esquadrão, na promessa velada de degraus ascendentes a quem matar mais pobre. O silêncio latejante daquela ausência, a que não volta mais cansada do serviço operário que lhe legou algumas horas mais de sobrevivência atrofiada, talvez mais uma pessoa iludindo a desvida com brilhosos retratos postados na internet, conferidos e curtidos no telefone andróide pago a prestação. E há o silêncio de quem suspira a segurança, afinal se foi só mais uma preta sem nome na periferia da história do Brasil. O silêncio de quem aprendeu a não fazer alarde e esperar a trovoada sossegar pra entrar com recurso jurídico. [caption id="attachment_150" align="alignleft" width="212"](Imagem: Thinkolga) (Imagem: Thinkolga)[/caption] Silêncio por silêncio há aquele da porta que não range mais quando é hora, o do tamanco que não chega mais ritmado de noitinha pensando no feijão, no namoro e no caderno das crianças. E há o silêncio dos deputados que não chamam no megafone a punição dos assassinos, porque quem matou lhe protege as mansões e quem tá no caixão não lhes parece herdeira promissora ou gerente de empresa. Silêncio por silêncio há aquele do grito mudo nos lábios, o que beijou a poeira e os coturnos, o das dezenas de executados no chão, na nuca, listados a giz no quadro das delegacias. E o silêncio arranhado pelo cochicho medroso nas redações, no horário nobre da tevê que já não reclama campanhas por justiça, que arruma as gravatas aguardando pra carimbar a pecha de vândalos na revolta favelada, a que queima caixas na rua contra a truculência que copia o nazismo. Silêncio por silêncio há o que vem após a reza de sétimo dia. E o silêncio no riso de deboche de gente também pobre, que passou na fartura anual dos concursos pra soldado, que alimenta os votos do pavor nas eleições, que recheia a escola de horrores que ensina a negociar a cifra do enquadro, a espancar, a rosnar disparando aço pra todos os lados, inclusive pro seu espelho. O silêncio vibrante de quem goza a sensação de super-herói de gibi ou de quem se submete ao major pra não pegar suspensão. Silêncio por silêncio há aquele que na padaria pediria pão e mortadela com 6 reais mas que não chegou ao balcão. O silêncio que fica depois da rajada, quando se esgota o arsenal da metralhadora estrangeira, a que dos galpões militares chega às gavetas do morro por um preço camarada. Silêncio por silêncio há o que zune depois da sirene, na tranca reservada aos órfãos do campo de concentração. Há o silêncio que ameaça estrangular no travesseiro, no banho, de quem se cobra não escrever mais sobre a carnificina do seu bairro, da sua gente, porque arregaça, porque deprime, mas que se pergunta como poderia se calar... E há, na democracia militar brasileira, o silêncio na madrugada da família negra que arriada, devastada, tomba no abismo do sono antes de despertar pro pesadelo.