Texto escrito por Guilherme Aniceto e publicado originalmente na Revista Subjetiva.
A Seção Judiciária do Distrito Federal decidiu, no último dia 15 de setembro, em caráter liminar, que psicólogos atuantes no país poderão aplicar terapias de “reorientação sexual” aos seus pacientes. Como informou o site do Conselho Federal de Psicologia (CFP), a partir dessa decisão, se uma pessoa gay ou lésbica procurar auxílio psicológico para “curar a homossexualidade”, os profissionais estarão livres para empreenderem terapias com esse fim, em vez de orientarem o paciente em torno do autoconhecimento, da aceitação e do respeito.
Na decisão, a Justiça determina:
“ao Conselho Federal de Psicologia que não a interprete [em referência à Resolução nº 01/1990, cujo objetivo foi de regulamentar a atuação profissional dos psicólogos no sentido de não tratar a homossexualidade como patologia] de modo a impedir os psicólogos de promoverem estudos ou atendimento profissional, de forma reservada, pertinente à (re)orientação sexual, garantindo-lhes, assim, a plena liberdade científica acerca da matéria, sem qualquer censura ou necessidade de licença prévia”.
Torno público todo o meu repúdio a essa decisão que, além de desrespeitosa aos LGBTs, também contraria a ética profissional, como o próprio CFP divulgou em seus canais de comunicação.
Não sei por que ainda temos de discutir esse assunto. Parecia que, cientificamente, já estava estabelecido que ninguém se torna homossexual, que a orientação sexual é a mesma desde o nascimento, que não dá para reverter uma coisa que não é reversível.
São diversas as razões pelas quais essa decisão é problemática e um desserviço aos LGBTs brasileiros:
Primeiro, a decisão dá margem para que a homossexualidade seja considerada doença. Há décadas já não somos mais chamados de doentes pela ciência, que já avançou nesse sentido. Porque, de fato, não somos doentes. Em vez disso, o que a justiça precisa fazer é regulamentar que a transexualidade não deve ser tratada pela lei no âmbito patológico, por exemplo. Até hoje, transexuais são vistos como pessoas doentes, precisam passar por exaustivos processos judiciais para terem reconhecidas suas identidades de gênero na sociedade; processos esses que incluem acompanhamento psiquiátrico. Não basta a pessoa saber e dizer que é transexual, ela precisa provar judicialmente que não está doente ou que está em completo domínio de suas faculdades mentais para afirmar ser quem é.
Segundo, a decisão estimula famílias e instituições a levarem jovens, de forma coercitiva, a tratamentos psicológicos para a “cura” da homossexualidade. Sabemos que a sociedade brasileira é fundamentalista, que enxerga homossexuais como desvios à natureza, que defende que existe opção sexual, que acredita no que convém aos preceitos religiosos. É claro que pais inconformados com a orientação sexual dos filhos tentarão “curá-los”. É óbvio que padres e pastores pressionarão seus fiéis a procurarem auxílio psicológico para se encaixarem na igreja. É evidente que jovens em processo de descoberta da orientação sexual verão na possibilidade da “cura gay” uma saída para serem aceitos. Em todo caso, essa decisão só leva ao sofrimento do homossexual, que não será “curado” e, em vez disso, enfrentará mais traumas e danos psicológicos.
Terceiro, a decisão deixa a questão aberta para a interpretação do psicólogo quanto aos caminhos a tomar junto a seus pacientes. Ou seja, não impede que o profissional leve suas próprias crenças em consideração na definição das terapias e aconselhamentos aos pacientes. Não sou psicólogo, mas como homossexual certamente não gostaria que meu psicólogo me sugerisse uma terapia de “reorientação sexual”. Para mim, soaria ofensivo. Tenho certeza de que para muitos outros homossexuais também.
O Conselho Federal de Psicologia informou em seu site que o processo está em fase inicial e já adiantou que vai recorrer da decisão. O que nos resta é aguardar e torcer para que essa decisão seja revertida e para que, em vez de retrocessos como esse, a justiça brasileira trabalhe para assegurar os nossos direitos.
Sobre o autor: Guilherme Aniceto é poeta, servidor público federal e ativista LGBT. Publicou os livros "Nós Líricos" (Editora LiteraCidade, 2015) e "Guerra" (Editora Penalux, 2017). Atualmente, é colunista da Revista Subjetiva, na plataforma Medium.