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No próximo dia 25, completa um ano do impasse político libanês que impede a eleição de um presidente para o país. Em uma análise mais contextualizada vê-se que o vácuo político vivido, muito mais do que o resultado de um atual clima de instabilidade, é o fruto previsível de uma receita certa de políticas antigas de um sistema em colapso
Por Thomas Farran
O último ano para o Líbano tem sido marcado por sucessivas crises, com uma economia debilitada e agora refém de uma bolha que atinge não só a capital, a antagonização política da classe trabalhadora – principalmente dos servidores públicos –, com a situação de caos na vizinha Síria que engrandece o já dominante ciclo de ingerência de agentes externos dentro do país, o pequeno Líbano se vê mais uma vez às portas do caos e da instabilidade.
Mas mais do que o tempo de apontar culpados pela atual situação, atitude que tem sido um esporte para a mídia local, essa seria a oportunidade definitiva de introspecção e de avançar com as tão necessárias reformas.
Mesmo porque as raízes do problema são internas e de longa data.
Um sistema moribundo
Para entender politicamente o que se passa hoje no Líbano, é preciso levar em consideração todo o histórico de formação demográfica, social e o desenvolvimento dessas figuras.
O sistema político vigente no Líbano é o denominado “confessional”, o que significa que os cargos representativos são distribuídos de acordo com a religião dos candidatos.
Formulado primeiramente em 1943, no chamado Pacto Nacional, o sistema previa que o presidente seria um católico maronita, o Primeiro-Ministro muçulmano sunita, o Porta-voz do parlamento um muçulmano xiita, os vices Primeiro-Ministro e Porta-voz do parlamento ortodoxos gregos e o Chefe de Gabinete seria druso.
Na época, com base no censo realizado em 1932, e sob pressão da França, foi decido que os assentos do parlamento deveriam ser sempre ocupados por uma maioria cristã em detrimentos dos muçulmanos.
Com o final da guerra fria que assolou o país entre 1975 e 1990, o sistema passou por pequenas revisões, como o Acordo de Ta’if que aumentava o poder do Primeiro-Ministro sunita, e reorganizava o parlamento para a proporção de 50:50.
Desde então esse tem sido o sistema-base libanês.
Acontece que, diferentemente de sistemas, condições demográficas mudam.
E o cenário libanês de hoje, não é o mesmo de 1932 – ano do último censo oficial do país – e a manutenção desse status é o principal combustível para o sectarismo, e para os episódios de radicalização encontrados no país.
O mais evidente, é claro, é o Hizbullah.
À parte de toda a componente da muito necessária resistência armada contra as contínuas ameaças e ataques israelenses ao sul, o partido e seu braço armado são a exata resposta de uma enorme parcela da população que, com a manutenção do defasado sistema, se viu sub-representada e usualmente ignorada. A comunidade xiita no Líbano é hoje, a mais numerosa.
O resultado dessa marginalização é óbvio, invariavelmente levando à radicalização.
Hoje o Hizbullah é uma das forças políticas e militar mais influentes no país, e o seu apoio popular escapa às fronteiras do sectarismo, o que faz dele – em termos – uma exceção.
Para além de alimentar o clima de desconfiança e a retórica sectária, o atual sistema acaba sendo o maior responsável pela bizarra forma de organização partidária do país.
As duas Alianças, 8 e 14 de Março, são basicamente dividas entre apoiantes do regime sírio (8 de Março) e opositores (14 de Março), posições que basicamente levam em conta o papel desempenhado pela vizinha Síria durante a guerra civil libanesa, e a subsequente ocupação do país até 2005. Essas posições são claramente delimitadas pelo sectarismo institucionalizado, e que acabou por ser revigorado ainda em 2005, após o assassinato do então Primeiro-Ministro Rafik Hariri.
No final, essas alianças partidárias pouco ou nada levam em consideração o posicionamento político-ideológico, e o embate fica limitado à uma briga por privilégios.
Política para velhos
Outro motivo da sobrevida desse sistema, é a manutenção de velhos rostos que revezam entre si a ribalta libanesa.
Essas figuras quase que em sua totalidade tiveram algum papel de grande destaque durante a guerra civil, principalmente nas práticas de crimes de guerra.
Dos atuais nomes sugeridos para o cargo de presidência da república, destacam-se Samir Ja’Ja’ e Micheal Aoun, ambos condenados no país por crimes de guerra e contra a humanidade durante o período da guerra, e ambos beneficiados pela lei da anistia no começo da década de 90.
Para além da permanência dessas figuras, existe o fator da hereditariedade na qual gira o alto escalão da política libanesa há mais de 40 anos. São Gemayels, Hariris, Frangiehs, Jumblatts que sufocam o já cansado sistema, de forma a fazer inveja ao mais escancarado dos coronelismos. Essa dominância tem os seus efeitos: impede a renovação do ambiente político, corta ciclos de alternância e coopta o poder de decisão.
Mesmo a sub-representação feminina na política é fruto desse sistema de base patriarcal e de profunda referência religiosa.
O outro Líbano
O Líbano não é um país pobre, mas não para pobres.
A onda de liberalização econômica que tomou conta do país no pós-guerra civil acabou criando o ambiente ideal para a uma sistêmica estratificação social.
O sucateamento das instituições públicas, e mais tarde o regime de privatizações generalizados e desregulamentados acabou por favorecer agentes externos dentro do país, e famílias – que não por coincidência – também fazem parte do grupo de velhos conhecidos que dominam a política. Para além da bolha imobiliária criada a custas de um longo e contínuo processo de limpeza social e gentrificação, que impossibilita as mais novas gerações, e os menos abastados terem condições de vida em grandes centros, o país vive uma grande crise do funcionalismo público e encontra dificuldades em lidar com a massiva sonegação de impostos, evasões de divisas e lavagem de dinheiro. Em 2013, a Tax Justice Network colocou o Líbano como o 7º maior paraíso fiscal do mundo, muito desse dinheiro proveniente de países do Golfo.
Dados recentes indicam que o processo de liberalização instalando no país está em pleno colapso. Para além de toda restante infraestrutura pública, a estrutura social também acompanha essa descendente.
Com uma parcela de 30% da população vivendo na pobreza, desemprego que atinge mais de 20% e com o 3º maior índice de desigualdade social no mundo (Credit Suisse; 2012), carros-bomba e refugiados deveriam estar em segundo plano na pauta política para uma resolução a longo-termo.
O argumento de Riad Salameh, diretor do Banco Central libanês e nome timidamente citado como candidato à presidência, de que a economia mostra sinais de recuperação apesar dos 4 anos de guerra Síria está atrelado única e exclusivamente à desvalorização da libra libanesa ante o dólar, a venda massiva de títulos públicos, a baixa do petróleo e o congelamento da taxa de juros, medidas que apenas atendem aos grandes empresários e ao mercado externo.
Outro fato relevante é o do Líbano ter sido, no ano fiscal de 2014, o maior recipiente de ajuda do FMI no mundo, totalizando 23% de todo o fundo alocado pela organização para ajuda externa.
A política geral, na verdade, tem sido de cortes orçamentais e austeridade.
Há pelo menos 3 anos o país experiência uma queda de braço entre governo e funcionários públicos por um reajuste dos baixos salários que acompanhe a inflação do país, que hoje passa dos 5%, o que não é alto, mas não leva em consideração o real poder de compra do trabalhador médio. São professores, técnicos, e administrativos públicos que são vítimas de políticas de austeridade e cortes, e aos poucos são substituídos por programas do Banco Mundial, da União Europeia e por funcionários terceirizados, maneiras que o Estado achou para “limitar” o impacto dos custos desses profissionais nos cofres públicos.
Esse cenário acabou criando dois Líbanos distintos, um de sofisticação, tendências, resorts e marinas, inacessível para a maior parte da população, e outro negligenciado, caótico e dividido para o cidadão comum.
E é essa divisão que alimenta o ciclo de ressentimentos dentro da sociedade libanesa.
Empura-empurra
Como é de se esperar, com o agravamento de todos os problemas do país, não demorou para que a regra da casa fosse o jogo de empurra-empurra entre opositores, governo e população.
É uma briga por interesses e privilégios enredada em nacionalismos e chauvinismos, nada mais. Hoje, não existe um debate sério observável sobre soluções para o problema libanês.
Agindo no oportunismo do caos causado pelo impasse político, e pelo clima de insegurança, atores externos fazem o sabem de melhor desde a independência do país: manipulam poderes.
Estrategicamente, o pequeno país mediterrânico sempre foi de grande importância, o que até mesmo transformou o país no maior hub de espionagem do Oriente Médio, seja pela localização, seja pela diversidade ou seja pelo papel que desempenha na região.
Com essa importância estratégica, acompanham os interesses externos que tornam o Líbano um microcosmos do que se passa em grande escala em toda aquela região.
No embate mais destacado do político da região, a Arábia Saudita exerce grande influência dentro da Aliança 14 de Março, principalmente no Movimento Futuro, onde a lealdade é comprada em troca de grandes investimentos, principalmente financeiros e imobiliários, dos países do Golfo na capital Beirute. Do outro lado temos Teerã, e o seu já transfigurado relacionamento com o partido Hizbullah, maior força dentro da Aliança 8 de Março, e de grande importância como braço da resistência e administração no sul do país.
Exercendo grande pressão, e mesmo apesar da guerra que vitimiza o país há 4 anos, o regime sírio de Bashar al-Assad ainda conta com importantes aliados dentro da mesma Aliança 8 de Março, fazendo com até batalhões armados do Hizbullah fossem destacados para território sírio.
Aparentemente a lição foi aprendida com o desenrolar da situação síria, mesmo com as lideranças do Hizb’ullah e do Movimento Futuro, Hassan Nasrallha e Saad Hariri respectivamente, comunicado em alto e bom som a intenção de desassociação de qualquer envolvimento de seus aliados no atual conflito iemenita, embora sob pressão de ambos Arábia Saudita e Irã para o contrário.
Mas o preço por esse posicionamento deliberado de ambas as alianças na guerra síria é bem visível. Parte daquela instabilidade alimentada pelo sectarismo no país vizinho já se adentrou em terras libanesas, como a situação da cidade de Arsal – um autêntico barril de pólvora-, sendo que o pequeno país hoje é o segundo maior destino de refugiados sírios no mundo, atrás apenas da Turquia.
O já pesado clima resultante do impasse político, e de uma crise econômica galopante arrasta também o antigo problema do sectarismo, e traz à tona a retórica xenófoba por parte de autoridades e grande parte da imprensa.
Para todos os efeitos, o problema do Líbano são os sírios. E é nessa simplicidade que são justificados crimes de ódio, exploração (tanto infantil, como a implementação do sistema kafala, já comum entre trabalhadores de origem asiática no país) e discriminação vividas pela camada menos favorecida dos quase 1,2 milhão de refugiados que fugiram para o país de pouco mais de 4 milhões.
São os bodes expiatórios, como os palestinos os foram há não tanto tempo atrás.
É claro que não deve tirar da equação os problemas do presente, como a situação na Síria ou o embate entre Irã e Arábia Saudita, mas isso tanto quanto não se deve tirar da equação todo o passado desde Sykes-Picot.
O problema está em se aceitar os termos do problema, e digerir que qualquer resolução que traga estabilidade de forma definitiva, e recupere o Líbano para os libaneses, passará necessariamente por reformas. Reformas gerais e profundas, que alcancem a ordem social do país.
Até lá, o país da “Paris do Oriente” de outrora vai continuar a ser a casa de todo o mundo, menos dos libaneses.
Uma casa quebrada, triste e dividida.