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Há mais ou menos um mês, eu, junto com a minha família, entrei num barco.
No fluxo, o barco balançou, chacoalhou, rodopiou. E eu enjoei, vomitei, chorei.
Senti saudades da terra firme de onde eu vinha antes.
Senti vergonha da minha dificuldade de me manter de pé ali dentro.
Senti raiva do barco, das pessoas nele.
Senti medo de não saber para onde estava indo, ou quem eu seria quando chegasse lá.
Senti tristeza de perceber que já não tinha mais como voltar.
Acima de tudo, porém, senti alegria. Alegria de estar viva. De estar me aventurando. De estar tão bem acompanhada nesta jornada. De estar aprendendo e descobrindo um mundo novo, fluido; escorregadio, mas cheio de possibilidades que a solidez de tantas certezas tendem a matar.
Alegria de aceitar e me soltar e me entregar e me descobrir, de repente, flutuando, leve. Livre.
Há mais ou menos um mês, eu conheci Ita Gabert e Barbara Stutzel. E elas me apresentaram uma Letícia que eu ainda não conhecia.
No começo, me senti estranha, deslocada, inadequada: eu, criatura das pedras, no meio de tanta gente do mato, quase todo mundo com alguma experiência em ecovila, permacultura, anos e anos de prática de vegetarianismo ou veganismo ou algo próximo… e eu pensando comigo se não era o caso de contrabandear, sei lá, um salame, para um momento de desespero.
De repente, eu, que nunca tinha sequer acampado na vida, estava lá, olhando embaixo das camas antes de deitar, para ver se não havia alguma criatura peçonhenta por ali. Cuidando para não deixar crianças sozinhas em lugares ermos, porque estava rolando um papo de onça na região. Sentada num assento sobre um balde, lendo nas simpáticas instruções da parede que “um pote de serragem costuma bastar” para cobrir meu cocô ali dentro – o resultado óbvio tendo sido uma prisão de ventre de quatro dias.
O curso – “O Segredo da Confiança” – não era sobre cagar na serragem, nem sobre aprender a conviver com outros animais, ou passar dias sem comer carne. Mas, sem esse curso, eu acredito que não teria conseguido fazer qualquer dessas coisas agora, e não só por uma questão de falta de oportunidade. Eu creio que não teria me permitido fazer qualquer dessas coisas.
Ita e Barbara são alemãs; moram em comunidades intencionais em seu país há décadas. Seu curso é um compartilhamento, de forma dinâmica e prática, do que sabem sobre a vivência e convivência comunitária e, especialmente, sobre como lidar com conflitos dentro de coletividades de forma a promover coesão e crescimento individual e conjunto.
O cerne do curso é o Fórum ZEGG (link só em inglês por enquanto), uma ferramenta que serve para promover transparência e visibilidade dentro da comunidade. O Fórum não tem pretensões terapêuticas ou de resolução de conflitos, embora muitas vezes resultem processos terapêuticos e conflitos sejam resolvidos, simplesmente pelo trabalho de transparência e visibilidade que ele proporciona.
O formato em si é bastante simples: integrantes se dispõem sentades em um círculo e alguém entra nele para falar de si (sentimentos e necessidades vivas naquele momento) com o apoio de duas pessoas que ficam no papel de facilitadoras do processo, fazendo perguntas e sugestões de falas e ações que a pessoa que está no centro pode ou não aceitar (mantendo, portanto, sua responsabilidade sobre si mesma).
No entanto, alguma coisa a mais acontece ali dentro. Talvez seja a segurança proporcionada pela escuta empática e atenta das pessoas ali presentes, talvez seja o prévio entendimento de que o que é trazido nunca é exclusivo de quem se expõe, mas sempre um fragmento de uma humanidade comum a todo o grupo e, assim, uma pista para que cada indivíduo ali se conheça melhor de alguma forma. Seja como for, o fato é que se abre ali um campo com uma energia diferente, muito similar à que vivenciei nas constelações sistêmicas de que participei; e experimentar esse campo é incrível.
As muitas horas do curso incluíram, além da prática do fórum, dinâmicas para que as pessoas se conhecessem melhor (a si mesmas e umas às outras) e tarefas lúdicas a serem cumpridas em grupo, além de muita cantoria e dança. Demorei para me tocar que havia um desenho aí para que nós, integrantes do grupo, formássemos uma comunidade, ainda que temporária, e que tivéssemos a chance de convivermos o suficiente para que desentendimentos começassem a surgir. Porque não adianta só falarmos sobre lidar com conflitos, né?
Eu trouxe ao Fórum o meu incômodo com o banheiro seco quase que como piada, embora fosse algo sério, que afetava meu humor e minha (enfezada) presença. Eu queria muito usar o banheiro, porque queria ver como era, mas, quando chegava lá… nada. Me sentia como se estivesse broxando e a comparação me parecia hilariante.
Mas, claro, essa parte era só o bandeide.
No fundo, havia o meu corpo manifestando minha dificuldade de me desapegar das minhas crenças em relação ao que eu podia ou não ser, fazer. Havia um medo meu de não dar conta daquelas mudanças todas, especialmente sabendo que não tinha mais como voltar atrás – não em paz, pelo menos. E uma desculpa para eu me manter na minha zona de conforto, confirmando para mim que eu não funcionaria fora dela.
Colocar as nossas tralhas emocionais para fora é tão salutar e necessário para o nosso bem-estar quanto defecar. E, assim como acontece com nossos dejetos, o que pode se tornar até tóxico se retido dentro de nós, se torna adubo que alimenta o ciclo da vida quando posto para fora.
Comecei falando dos meus intestinos, rindo, terminei falando das minhas entranhas, chorando. E naquela noite, como se por mágica, nasceu de mim uma Letícia capaz de cagar num balde com serragem.
Vida. Nova vida.
Esse foi apenas um dos meus momentos no Fórum. Houve muitos outros, igualmente profundos e transformadores, inclusive durante falas de outras pessoas. Foi uma experiência revolucionária e tão fantástica que, assim como me encho de gratidão por ter tido a oportunidade de vivê-la, me encho de tristeza por saber que ela está atualmente praticamente restrita a quem pode pagar por ela, pela necessidade de cobrir o custo das passagens de Ita e Barbara (que vêm da Alemanha) e do alojamento e alimentação nas ecovilas onde ocorrem os módulos. Ressalvo aqui o esforço considerável que tem sido feito no sentido de não impedir o acesso de quem tem interesse, mas não tem grana.
Eu gostaria de levar o Fórum para fora desses espaços privilegiados. Porque falta o recorte de raça, de classe, de região. Porque o Fórum, para mim, faz parte da revolução da qual eu quero fazer parte – uma revolução feita pela conexão, pela cooperação, por mudanças que ocorrem não por força, medo ou vergonha, mas porque mudar passou a fazer sentido, simplesmente. E eu gostaria que mais pessoas tivessem acesso a isso, se quiserem.
Então eu vim aqui mostrar. Chamar. Pedir. Porque quanto mais gente se interessar pelo Fórum, maior a probabilidade de conseguirmos fazer uma formação de facilitadores de Fórum aqui no Brasil, o que nos possibilitaria disseminá-lo com a nossa cara e as nossas cores, e com um custo mais baixo ou mesmo em modelos de economia alternativa, corresponsabilização financeira, etc.
Ita Gabert oferecerá a palestra vivencial “Comunicação e Transparência em Grupos” na Umapaz, em São Paulo, no dia 13 de março, das 19 às 21hs; havendo procura por essa palestra, ela conduzirá, também nesse mesmo espaço, de 1 e 2 de abril, o curso vivencial “O Segredo da Confiança”. Ambos os eventos serão gratuitos; ótimas oportunidades de colocar os pezinhos na água e ver se dá para encarar.
Bora lá?
**** Conheça também a página do curso no face, "Semente da Confiança". ;)
Atualização: a data do curso vivencial da Ita mudou para 1 e 2 de abril (antes estava 7 e 8). daí alterei aqui para constar.