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Um amigo meu me contou que o filho tem enrolado muito para dormir. Deita, daí pede para ir ao banheiro (onde não faz nada), daí pede um lanche, daí pede água, daí pede história, daí... tem pai ou mãe por aí que não saiba o que é isso?
Então que, outro dia, o menino, além de pedir a água, cuspiu a água e se molhou todo. Meu amigo ficou possesso. Como assim, cuspir a água de propósito, só para achar um jeito de sair do quarto?
No dia seguinte, contudo, descobriu que o menino tinha cuspido a água porque sentiu uma casquinha de feijão nela. Engasgou ou assustou, sabe-se lá. De qualquer forma, foi um acidente. Imagine a culpa desse pai (imagine você - eu infelizmente não preciso imaginar porque já agi assim também, e mais vezes do que gostaria).
Podemos agir defensivamente diante dessa culpa, nos escusando pela nossa precipitação, dizendo que “mas também, ele sempre faz coisas assim, eu ia pensar o quê?” (com base no que já passou) ou dizendo que “é bom para ele entender que eu não vou me deixar enganar se ele fizer” (com base no que poderá vir no futuro).
Essa postura me lembra a história de Pedro e o Lobo - a fábula de Esopo que adverte contra a mentira. Nela, um menino, Pedro, para se divertir, engana por duas vezes seguidas as pessoas de sua aldeia, gritando “Lobo! Lobo!” sem estar em perigo; quando o lobo de fato aparece, ninguém lhe dá ouvidos, porque ele mentiu antes.
O mesmo conto serve, de certa forma, para advertir pais e mães a não tolerarem comportamentos que considerem desagradáveis nas crianças, ou elas os repetirão para sempre. Que tem que “deixar se ferrar um pouco para aprender”. Alguém nunca ouviu isso?
É fácil culpar a criança pela injustiça que nós cometemos com ela nos respaldando em seu comportamento passado ou na expectativa de comportamento futuro, mas isso não tornará mais justa a nossa atitude, nem menor a violência que a criança percebe nela; só nos protegerá da percepção da nossa própria cagada pelo que realmente ela é: uma cagada.
Somos nós, ali, as pessoas com todo o poder. Somos nós, ali, para a criança, o exemplo e o referencial de justiça, amor, consideração.
Cabe a nós termos o compromisso de ver cada situação sem nos deixarmos levar pelo preconceito criado pelos antecedentes, ou seja, pelo que veio antes, ou o medo de criar precedentes, ou seja, pela presunção do que virá depois.
Afinal, que estímulo podemos ter para mudar se já nos rotularam de uma determinada forma? Que estímulo podemos ter para cooperar se já vão nos julgar com base nos momentos em que não cooperamos? Que estímulo podemos ter para melhorar se sempre estaremos à sombra de nossos piores momentos?
Similarmente, que estímulo podemos ter para sermos altruístas, para pensarmos também em outras pessoas, se nos tratam como se fazê-lo em relação a nós, se considerar o nosso ponto de vista, fosse “abrir uma perigosa exceção”, porque “se dá a mão, querem o braço” e “se fizer para ume pessoa, todes vão querer” e etc.?
É bom sim ter uma visão do todo, para enxergarmos padrões de comportamento e tendências (e não só das crianças, mas nossas também) e podermos pensar em soluções mais permanentes, mais satisfatórias para todas as pessoas envolvidas. Mas essa é uma análise muito mais difícil de se fazer no calor do momento, quando o que vigora é o cansaço, o sono, a frustração. Em situações assim, esse todo na verdade polui e pode nos levar a agir por impulso, com base em julgamentos imediatos, instantâneos e, claro, equivocados. E nos arrependeremos depois.
Assim, a culpa que sentimos dói, mas essa dor é benéfica e necessária. Vacinal. Não é que precisamos viver sob uma bigorna - todo mundo erra, todo mundo falha, somos seres humanos, afinal. É que essa dor é o que nos prevenirá contra repetirmos o nosso erro. Se fugirmos dela, acabaremos evitando também a responsabilidade pelos nossos atos e, assim, a oportunidade de mudança. A possibilidade de lembrar, no futuro, da importância de buscarmos a paciência de perguntar, de investigar, com coração e mente bem abertos.
E analisar cada situação como se fosse a primeira e a última.