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No meu último texto, falei sobre gaslighting (lê-se “gaslaitim”). Tentei esmiuçar bem o conceito, porque o considero de vital importância.
Como eu disse lá, gaslighting é alguém manipular outra pessoa para levá-la a desconfiar de sua própria percepção da realidade e fazer com que ela duvide de si mesma, ou, ainda, com que outras pessoas duvidem dela. Frequentemente ambos. É possível, inclusive, convencer uma pessoa (e quem está ao redor dela) de que ela está ficando mentalmente doente.
É uma forma insidiosa de violência psíquica e seus efeitos são, claro, devastadores.
As pessoas mais vulneráveis ao gaslighting são aquelas cujas palavras, opiniões e sentimentos tendem a ser diminuídos ou desconsiderados pela sociedade como um todo. Afinal, de um lado, já se tende a não acreditar nelas e, de outro, por estarem habituadas a esse descrédito, elas próprias o internalizam e passam a duvidar de si mesmas com frequência. Ou seja, um prato cheio para uma pessoa gaslaiteadora.
Crianças e adolescentes são, para mim, as maiores vítimas de gaslighting, e de uma forma tão sistemática e institucionalizada e naturalizada (normatizada) que a maior parte das pessoas nem se dá conta de quando o faz. O adultismo cria um contexto em que a pessoa adulta se julga no direito de se aproveitar da ingenuidade e credulidade da criança, sendo esta vista sempre de uma perspectiva adultocêntrica, sem empatia ou respeito. Adultes de todas as idades se juntam e conspiram para gaslaitear crianças e adolescentes. Acham engraçado, acham útil, acham legítimo se aproveitar deles dessa forma.
Nem mesmo na modalidade mais escancarada de gaslighting, a mentira deslavada, em que se nega que algo que aconteceu quando de fato aconteceu, ou se diz que aconteceu quando, na verdade, não aconteceu, alguém parece se indignar com essa covardia. Quantas vezes não vemos adultes prometendo algo a uma criança e depois dizendo que não, nunca prometeram nada, que não sabem do que a criança está falando? Quantas vezes não vemos adultes, ao verem suas palavras ofensivas serem repetidas por crianças diante de pessoas que eles preferiam que não as ouvissem, saem da sinuca com "criança inventa cada coisa"?
E tem ainda os casos em que a pessoa cresce e contesta a criação violenta que recebeu e tem que ouvir de volta que não foi tão ruim assim (“ai, que exagero! Que melodrama!”), ou, pior, que nada daquilo jamais ocorreu (“não me lembro disso”, ou, na versão mais cara de pau, “nunca! Que mentira!”). Isso se não rolar a reviravolta culpabilizante que tenta estabelecer que ela é uma ingrata por sequer questionar aquilo, como se, ao fazê-lo, ela estivesse necessariamente negando qualquer coisa boa que já tenha sido feito a ela por quem a educou.
Aliás, me incomoda ver a quantidade de pessoas que admite a violência, mas faz piada a respeito, contando para outras pessoas como se fosse engraçado, como se a tortura física e/ou psíquica que infligiu sobre outro ser fosse algo de que se orgulha, minimizando o sofrimento de quem passou por aquilo. Ou, pior ainda, culpando a própria criança, dizendo que ela causou aquela agressão, ou transformando brutalidade em prova de amor, ao dizer que ela foi agredida pelo bem dela própria. Como se não se tratasse de um ato deliberado, ou descontrole, ou falha de uma pessoa adulta. Como se não houvesse qualquer outra reação possível naquela situação. Como se fosse admissível usar violência como "educação".
E o “gaslighting de flagrante preparado”? Em que se provoca uma pessoa até que ela perca a cabeça e então se utiliza essa explosão dela contra ela, para deslegitimar seu ponto de vista, para negar seus pedidos, para injustiçá-la? “Agora você perdeu a razão” ou “apelou, perdeu”.
Quantas vezes não vemos adultes fazendo bullying com a criança ou adolescente até que se descontrolem (se aproveitando covardemente do fato de que eles naturalmente têm maior dificuldade em se controlar) e daí usando o turbilhão emocional causado para legitimar suas violências, ou negar o que queriam negar desde o começo, ou impor o que queriam impor desde o começo – “agora que você não vai ganhar tal coisa” ou “agora que eu não faço tal coisa” ou “agora que você vai mesmo no dentista” – como se em algum momento isso tivesse estado sob o controle da criança ou adolescente em questão.
É tortura psicológica mesmo. Com qualquer outra pessoa, de qualquer idade, seria inadmissível, seria um horror, um escândalo. Numa relação de trabalho, seria assédio moral; entre pessoas da mesma faixa etária, seria bullying; num relacionamento amoroso, seria abuso psíquico. Mas, se é de uma pessoa adulta com criança, com adolescente, pode. Galera chega a achar graça, achar inteligente essa manipulação.
E isso tudo sem falar na deslegitimação de sentimentos. A criança fala que está com raiva e escuta “tá com raiva nada, com raiva estou eu”, como se só fosse possível uma pessoa sentir raiva por vez. A criança chora e ouve “cala a boca senão te dou motivo para chorar”, como se seus sentimentos não fossem legítimos. Ela fala que está triste e escuta “tá nada, tá só querendo atenção”, como se essa pessoa adulta onipotente pudesse inclusive determinar de fora dela o que ela sente ou não (o infame "não foi nada" entra nisso também).
Em 2013 (e, de novo, em 2014, e provavelmente ocorrerá também este ano), o apresentador de TV americano Jimmy Kimmel fez um desafio para que mães e pais dissessem às crianças, na maior desfaçatez, que comeram todos os doces que elas haviam arduamente coletado no halloween (Dia das Bruxas) e filmassem sua reação. O resultado são inúmeros vídeos de crianças chorando, se jogando no chão, se descabelando, gritando, enquanto adultes riem, debochades, segurando a câmera. Porque, né, é tão bonitinho ver como eles se abalam "por nada".
Talvez essas pessoas não se deem conta de que não é pelos doces que elas estão chorando, e sim pela sensação de traição, injustiça, frustração extrema. Pela sensação de que alguém que elas amam foi sacana com elas e está de boa com isso, inclusive achando engraçado. Quem sabe elas conseguissem compreender a crueldade da brincadeira se fosse sue companheire, numa relação monogâmica, chegando e dizendo "olha, fiz sexo com outra pessoa pelas suas costas", assim, só para zoar, só para filmar a reação delas. Legal, né? Saudável.
Já me disseram "ah, mas algumas crianças riem depois, quando os pais e mães falam que é só uma brincadeira". Sim. Algumas riem. De alívio, de constrangimento, se sentindo ridículas por terem "caído". Lição? Não leve seus sentimentos tão a sério, não seja patético, sofrendo desse jeito. Isso é gaslighting. Tratar o nosso sofrimento como algo bobo e engraçado é gaslighting. Por que não seria para uma criança ou adolescente?
Precisamos compreender que essa dúvida fundamental (“será que o problema sou eu? Será que estou perdendo a cabeça?”), é como um esporo de fungo que se alastra pela mente da pessoa ao longo de toda a sua vida, muitas vezes impedindo que ela se defenda mesmo em situações de agressão, porque tem a sensação paralisante de que, a despeito de todas as evidências em contrário, ela, de alguma forma inexplicável e misteriosa, deve merecer o que está sendo feito a ela. Que de alguma forma aquilo deve ser culpa dela. De que, por menos sentido que algo faça, por mais que ela tenha certeza de que está com a razão, ela deve estar errada.
Não é bobagem. Não é pouca coisa. Quantas pessoas já sofreram abuso na infância e, ao relatarem o ocorrido, foram tratadas com ceticismo, cinismo e indiferença por quem deveria defendê-las e protegê-las?
E quantas mais já não sofreram abusos e se calaram, prevendo que, se abrissem a boca, seriam tratadas com esse ceticismo, cinismo e indiferença? Que chegaram a silenciar a si próprias, bloqueando suas memórias e esquecendo seus abusos ou convencendo-se de que, "por criancice" os haviam inventado?
Muitas vezes, sem nem nos darmos conta, estamos minando a convicção de nossas crianças em si mesmas e em nossa confiança nelas. E como se isso, por si só, não fosse péssimo, ainda estamos tornando-as vulneráveis à ação de pessoas que, muito mal-intencionadamente, continuarão com elas o trabalho de descrédito a que nós um dia as submetemos.
Chega, né?