Esta semana vi uma campanha no facebook para que mulheres postassem fotos de si mesmas grávidas, dizendo serem contra o aborto.
Muitas participaram, muitas outras participaram para dizer que, apesar de terem filhes, são favoráveis à legalização do aborto, ou pelo menos à descriminalização do aborto. Inúmeros posts foram feitos a respeito, nos mais diversos blogs.
Em meio a isso tudo, no grupo feminista de que participo, uma pessoa querida trouxe um debate muito interessante: a posição do “eu não faria, mas sou a favor” ou “sou a favor, mas não faria”. De onde vem a necessidade de dizer que não faria? Não seria, de certa forma, um julgamento moral, uma forma de dividir as mulheres em duas classes – as que fariam e as que não fariam?
Seria realmente empático da parte de alguém defender o direito ao aborto seguro enquanto ainda se condena essa prática como uma “atrocidade” ou “monstruosidade” ou “assassinato” ou algo assim?
Eu já abortei e, a mim, particularmente e pessoalmente, não me ofende alguém só dizer que não faria. Para mim, não é o mesmo que dizer “considero uma atrocidade, mas apoio o seu direito de cometê-la” ou “acho uma merda, mas ok outra pessoa fazer”, ou mesmo falar “eeeeeeu não faria” (assim, com uma entonação que deixa poucas dúvidas sobre o que a pessoa realmente acha de quem faz).
Um mero “eu não faria”, para mim, soa apenas como uma pessoa falando de si própria. Dizendo que ela, por uma miríade de motivos (que não se atem aos religiosos, vide haver pessoas religiosas que abortam e pessoas sem religião que não abortam), acredita que não faria um aborto.
Digo “acredita” porque, como quem já engravidou – de propósito ou sem querer, desejada ou indesejadamente – sabe, engravidar muda muita coisa na gente. Eu já vi pessoas que sempre disseram que não queriam ter filhes e que abortariam se engravidassem resolverem ter a criança, assim como já vi pessoas que sempre juraram que nunca, jamais, nunquinha, de forma alguma, abortariam (bastante julgamento moral aí) depois de se verem grávidas em pouco tempo passarem a pertencer a esse grupo de mulheres que antes elas tanto haviam julgado. Frise-se o plural em ambos os casos, porque não falo de uma mulher nem duas.
Mesmo assim, fica a pergunta do por que, do para quê. De onde vem a necessidade de a pessoa oferecer gratuitamente essa informação sobre si mesma, se é algo que trata apenas dela e não tem nada a ver com apoiar ou não a legalização do aborto?
Bom, primeiro, penso na pressão de outras pessoas – família, amigues, eventuais colegas de trabalho, ou pessoas que frequentem o mesmo lugar de culto religioso – especialmente se estamos falando de posicionamentos em TL de Facebook. Essa pressão se torna ainda maior pelo fato de estarmos falando de algo que, infelizmente, ainda constitui um crime na nossa legislação. Não são poucas as pessoas que defendem a suprema baboseira de que o mero falar a respeito e defender a legalização seria um crime em si (a “Incitação ao crime”, prevista no artigo 286 do Código Penal – “Incitar, publicamente, a prática de crime”), como forma de silenciar e censurar opiniões pró-legalização.
A pessoa que age assim tenta fugir da mesma reprovação moral de que nós, mulheres que abortam, sofremos. Eu acho, claro, que seria muito útil que ela desconstruísse isso. Útil para ela e para a coletividade em que ela está inserida. No entanto, não me sinto no direito de exigir essa desconstrução dela. Porque é algo que cada pessoa tem seu tempo – e seu desejo ou não – de fazer. Sinto que empurrar pessoas para que enfrentem essa repressão é tão injusto quanto, guardadas, claro, as devidas proporções, exigir que pessoas LGBT saiam do armário quando elas não se sentem prontas para fazê-lo. A pressão para elas é invencível naquele momento.
Todas as vezes em que eu falo sobre aborto há pessoas que me procuram com mensagens privadas de apoio. Muitas delas jamais abortaram e acreditam que não o fariam e mesmo assim empatizam tanto com a mulher que aborta que sentem a necessidade de manifestar isso de alguma forma. O fato de elas temerem sofrer represálias por conta desse posicionamento diminui a validade do acolhimento que elas se dispõem a prestar? Eu sinto que não.
Outro ponto é o valor argumentativo dessa assertiva. Dizer “eu não faria, mas defendo o direito de fazer” realça, para mim, a necessidade de não impormos a outras pessoas nossos próprios valores, crenças, vontades, etc. Frisa a desnecessidade de concordância com o ato para a aceitação dele.
A presença dessa declaração, muitas vezes, longe de ser uma forma de criar a distinção entre as mulheres que fariam e as mulheres que não fariam, é uma forma de lembrar a todes precisamente a irrelevância da posição pessoal de cada ume sobre si mesme quando se pensa numa criminalização que é aplicada a toda a coletividade. É uma forma de demarcar que a legalização obviamente não torna obrigatório o aborto, mas apenas o possibilita para quem o QUEIRA.
Há quem problematize (com muita propriedade) se não seria contraproducente tentar desfazer uma distinção através de uma fala que aparentemente a reafirma. Mas eu acredito que não, porque já vi discussões em que foi esse posicionamento que permitiu que a pessoa percebesse que falar de legalização do aborto não é, necessariamente, falar dela própria abortar ou não.
Um outro aspecto, não menos importante – aliás, o mais proeminente para mim nessa questão da empatia – é a necessidade da pessoa de reafirmar para si mesma valores que, talvez, sinta-se traindo ao defender a legalização do aborto. Porque ela pode ter convicções tão profundas quanto ao aborto ser algo fundamentalmente errado que lhe seja muito difícil conciliar isso com sua defesa do direito de outras pessoas decidirem sobre algo que envolve a autonomia que têm em relação a seus corpos. E falar isso talvez seja a forma que essa pessoa encontrou de ficar em paz com um posicionamento que ela sente ser contraditório ou incoerente. E eu respeito isso.
Eu, pessoalmente, não acredito que um feto seja uma criança, a menos que seja uma criança para a mulher que o carrega. Eu penso que o que torna o feto um bebê é a mulher que o carrega vê-lo dessa forma: humanizá-lo, personalizá-lo. Não é algo baseado na ciência ou na religião, é quase uma forma de sentir. Afinal, eu já engravidei três vezes, mas em apenas duas senti que havia uma criança crescendo dentro de mim.
Daí, por pensar dessa forma, às vezes me esqueço de que muitas pessoas acreditam que há um bebê dentro de cada mulher grávida desde o momento em que ocorre a concepção. De que, quando eu falo em aborto, essas pessoas ouvem assassinato. E reagem, muitas vezes, com a mesma revolta com que eu reajo quando pessoas falam de seu direito de maltratar crianças.
Então eu tento manter isso em mente nas minhas interações com outras pessoas quando trato do assunto – que elas não necessariamente sentem e pensam como eu em relação a isso e que elas não precisam sentir e pensar como eu para me apoiarem no meu sentir e pensar e, inclusive, agir. Que, aliás, me parece uma grande demonstração de uma tolerância essencial à vida em sociedade que elas sejam capazes de colocar de lado convicções tão profundas e aceitarem o meu direito de praticar um ato que muitas vezes vai contra tudo em que elas acreditam.
A empatia, para mim, não está em não julgar, mas em colocar o meu julgamento de lado por um segundo e me colocar na posição da outra pessoa, tentar ver pela perspectiva dela o que se passa com ela, me despindo, naquele momento, das minhas próprias crenças, da minha forma de ver o mundo e adotando as dela.
No meu entender, empatizar inclui aceitar que a pessoa pode pensar diferente. Que ela tem o tempo dela para desconstruir e o querer dela em relação a fazê-lo ou não. E que não é porque eu acho que ela deveria desconstruir que ela tem que desconstruir, já que, assim como eu acho que ela deveria desconstruir, ela também pode achar que quem deveria desconstruir sou eu. A moral de cada pessoa só cabe a ela própria construir, desconstruir e reconstruir – ou não.
Por isso, não me incomoda que a pessoa tenha para si mesma que eu cometi uma atrocidade, uma monstruosidade, um assassinato. Não creio que alguém pense assim porque quer, simplesmente. Conheço casos de pessoas que veem o aborto como infanticídio e mesmo assim o fizeram, porque se viram forçadas a isso pelas circunstâncias em que estavam, e hoje ainda se odeiam por isso. Será que alguém faz isso por vontade? Será que alguém vive em conflito porque gosta de sofrer? Não acredito nisso. Me incomodaria sim se ela manifestasse esse julgamento de forma a me ferir com ele, se ela pretendesse me adequar à moral dela, me impor o sofrimento que ela sentiria no meu lugar.
Agora, obviamente, não é porque algo não me fere que não fere a qualquer outra mulher que tenha feito um aborto. A maioria delas se ressente e muito de ver a necessidade de outras pessoas de logo estabelecerem que não fariam um aborto quando defendem sua legalização. E isso, só isso – saber que há alguém que, quando eu falo assim, se sente julgada e discriminada, ao invés de apoiada – para mim, como diria Lucys Santos, já seria motivo para evitar essa fala.
Além disso, o aborto é invariavelmente um tópico delicado para quem passou por ele. Especialmente por conta da ilegalidade, o tratamento (ou até não tratamento, que infelizmente acontece bastante) que mulheres recebem durante o procedimento muitas vezes é traumatizante. A sensação de desamparo, de frieza, o medo de morrer, o medo de ser descoberta, muitas vezes se somam a outros sentimentos comuns (embora nem sempre presentes) a respeito, de pesar, culpa, tristeza, reprovação moral, temor religioso, etc. São lembranças que frequentemente passam a acompanhar a mulher que aborta para o resto da vida dela.
Me parece absolutamente irrazoável exigir que alguém que passou por tudo isso, alguém que está na posição de pessoa oprimida, aliás, ainda tenha empatia e compreensão quando as palavras de outra pessoa cutucam essa ferida, que tantas vezes sequer chegou uma dia a cicatrizar. Que muitas nunca tiveram a chance de elaborar, falar a respeito, por medo de serem presas.
O pior aspecto da criminalização, ao meu ver, é esse silêncio. É essa falta de franqueza, de diálogo. Não só porque haja mulheres sofrendo sozinhas enquanto precisam do nosso apoio, mas porque essa troca facilitaria a empatia tão necessária na compreensão da posição da outra pessoa e no respeito ao direito dela em relação ao seu próprio corpo. Porque é fácil ser contra um ato em abstrato, sem ter que olhar nos olhos de quem o comete e ouvir seus motivos. É fácil esquecer quem está ao redor do feto, do embrião, quando aquela pessoa não está diante de você.
Se, por um lado, não temos como mudar de fora a moral das pessoas, por outro, sinto que a legalização seria a nossa forma de estabelecer limites para que a moral pessoal de um indivíduo não extrapole a sua pessoa, impondo-se a outrem. Ao mesmo tempo, a legalidade abriria o caminho para a conversa que poderia suscitar o acolhimento que permite o apoio à outra pessoa mesmo quando os atos desta contrariam a nossa moral.
Estima-se que uma em cada cinco mulheres já tenham feito pelo menos um aborto. Mulheres solteiras, casadas, com filhes, sem filhes, com grana, sem grana. Olhe ao seu redor, para as mulheres que você ama. Uma delas (ou mais!) pode estar neste momento sofrendo muito com as suas palavras e você jamais saberá disso. Isso não é suficiente para que você reconsidere seu uso?
Foto de capa: Reprodução / Facebook