Uma frente unida contra as crianças

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[caption id="attachment_539" align="alignleft" width="425"]choque (Foto: Flickr/Levi Bianco)[/caption]

O pai perde a paciência e grita com ela. Ela se assusta. Tantas vezes lhe disseram que não se grita, que gritar é desrespeito, que gritar não é certo. Ela então bronqueia com o pai. “Você gritou comigo.” Ao que o pai responde, prontamente “Gritei porque você não me escuta”.

A menina franze a testa, pensativa. Quando ela grita, ela está errada. Quando gritam com ela… ela está errada também. Ela está sempre errada, parece. Afinal, o pai justificou sua conduta com a conduta dela. Ele não pediu desculpas. Ele não reconheceu seu erro. Porque pai não erra. Pessoa adulta não erra. Só criança erra. Criança sempre erra.

Soa familiar? A maioria de nós já passou por isso. Muites, aliás, ainda passam, mesmo depois de crescer. É uma forma de gaslighting (lê-se “gaslaitim”) muito comum, que se pratica com a criança. Gaslighting é quando alguém manipula a situação, tentando (ou conseguindo) nos fazer duvidar da nossa própria percepção, ou nos fazer achar que estamos perdendo a cabeça. Por exemplo, quando a pessoa nos agride e faz parecer que a vítima é ela, ou que a culpa da agressão é nossa, ou que nós é que somos sensíveis demais, ou que não estamos sentindo de verdade o que estamos sentindo etc. Agredir uma pessoa e “virar a mesa”, imputando a ela própria a responsabilidade pela agressão sofrida, portanto, é gaslighting.

Agora, imaginemos que a pessoa que, junto com esse pai, cria essa criança está presenciando essa cena. Como ela deve agir? Ela deve interferir?

É muito comum que as pessoas achem e defendam que não se pode fazê-lo nunca, sob pena de desautorizar a outra pessoa adulta, ou gerar na criança uma sensação de insegurança, de não poder confiar nes adultes em sua vida.

Eu discordo dessa posição. E com muita veemência.

Primeiro porque a autoridade que temos perante nosses filhes não vem de nunca errarmos.

Não precisamos ser infalíveis para que nossa autoridade seja mantida. Não precisamos fingir perfeição sobre-humana para sermos dignes dela. Se entendermos a autoridade como algo que vem naturalmente da compreensão, por uma pessoa, de que outra pessoa está em posição de orientá-la e guiá-la seja em relação a algo específico, seja em relação à vida como um todo, pelo contrário, é a nossa humanidade que serve de exemplo para a humanidade das crianças nas nossas vidas. 

Elas verão que (1) todo mundo erra, e que (2) não é porque alguém erra às vezes que erra sempre, as ajudará a lidar com seus erros de forma construtiva. Aliás, a própria maneira como lidamos com nossos erros serve de modelo para elas. É a nossa chance de ajudá-las a vê-los como oportunidades de aprendizado e não de autodepreciação e flagelação.

Além disso, é muito perigoso para a autoestima de qualquer pessoa sentir-se a única pecadora num mundo de pessoas virtuosas. É muito acolhedor vermos que a imperfeição não mora só na gente.

Segundo, porque não consigo pensar em nada que cause mais insegurança numa criança que essa noção flutuante de “certo” e “errado”.

A criança, no começo de sua vida, depende de outras pessoas para saber o que é ou não aceito, o que é ou não bom. Com o tempo, aos poucos, ela internaliza isso e passa a, ela própria, balizar seu comportamento, refletindo e aplicando esses valores que ela aprendeu. Esse processo é muito dificultado quando não parece haver lógica naquilo que ela está absorvendo; por exemplo, quando um determinado comportamento só parece ser considerado errado quando vem dela. Com o tempo, para acomodar essa falta de lógica, ela poderá facilmente chegar à conclusão de que o problema não está no comportamento em si, mas nela própria, como pessoa, como ser.

É claro que, às vezes, não vale a pena intervir, ou não é o momento, ou não conseguimos, ou sequer sabemos como. Mas, às vezes, presenciamos desrespeitos que não podemos nos furtar a demarcar de alguma forma.

A criança depende de nós para entender que o que ela está sofrendo é uma injustiça. Ela depende de nós para absorver a noção de que, assim como lhe é exigido respeito, lhe é devido respeito.

Principalmente, ela depende de nós para defendê-la das pessoas que ela ama incondicional e desesperadamente, porque, muitas vezes, ela própria não é capaz de olhar para um pai, uma mãe, ou mesmo avô, avó, tio, tia e registrar que aquela pessoa que lhe é tão querida está agindo com ela de forma injusta. De que aquela pessoa, para quem o carinho dela erigiu um pedestal, está errando com ela, especialmente quando insiste que não está. E aí, se as outras pessoas adultas que ela tem como referência estão ali em volta e presenciam a cena e se omitem, ela dificilmente conseguirá defender-se emocionalmente dessa violência sozinha – sim, porque é violência que o erro de outra pessoa nos seja imposto como acerto.

A tendência dela, assim, será a de recolher-se em sua incompreensão e culpar-se pelo ocorrido, sentindo-se errada e inadequada e merecedora do que quer que tenha sido feito com ela. Talvez um dia ela se torne uma pessoa cuja reação automática diante de uma grosseria é encolher-se e culpar-se em silêncio, ou alguém que para vencer essa reação automática, passa para o outro extremo, tornando-se excessivamente defensiva, reativa, agressiva, mesmo quando não houve qualquer ofensa ou insulto.

Mas mais do que pensar em como isso pode ou não afetar uma criança no futuro, o motivo pelo qual devemos impedir que ela receba um tratamento injusto é simplesmente porque ele é injusto e ninguém merece ser tratado de forma injusta. E não vejo como podemos querer isso para alguém a quem amamos tão profundamente.

Todes nós erramos. Por vezes nós mesmes seremos as pessoas que estão sendo injustas. A questão é: o que você prefere que seja preservado? A sua imagem de infalibilidade ou a autoimagem da criança?

A minha escolha é clara. E é por conta dela que eu intercedo em favor da criança sempre que julgo necessário, e porque peço e espero que façam o mesmo comigo, quando é o caso (como já foi e muito mais vezes do que eu gostaria).

Claro que há coisas que devemos discutir em particular. Mas, além de tudo o que eu já expus acima, há um outro ponto que considero fundamental: o de que é importante que as crianças vejam que é possível discordar com respeito, que discordar em si não é uma ofensa e que, mesmo que as pessoas discordem ou até briguem, elas podem se entender conversando.*

E é por isso que me incomoda a abordagem da “frente unida”, em que as pessoas adultas responsáveis pela criança nunca se contradizem diante dela e guardam suas discordâncias, especialmente em relação à sua educação, para quando ela não está por perto.

Quando es adultes formam uma frente unida, o que sobra são crianças excluídas. Não apenas são a parte mais fraca e frágil da relação familiar, mas as pessoas que detêm algum poder nela estão unidas de uma forma que, muitas vezes, parece ser contra elas.**

Ao invés de fomentarmos a visão da família como uma coletividade, um todo, a polarizamos, gerando um antagonismo entre crianças e adultes. E esquecemos que, no fundo, estamos todes no mesmo time.


  • Alfie Kohn fala disso muito lindamente em seu livro “Unconditional Parenting“: “… it’s healthy for children to see that adults sometimes disagree, which helps to underscore that we’re human. Is also allows us to show them how people can resolve their disagreements respectfully – or, in some cases, how we can just learn to tolerate differences. These important life lessons are lost when both parents feel compelled to take the same position on every issue in front of the kids, not to mention the inherent disonesty of doing so.”