Publicidade dirigida a crianças: libertarismo ou liberalismo?

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marionete

Como eu já disse, existe uma diferença entre libertarismo e liberalismo. Basicamente, o libertarismo defende a autonomia do indivíduo contra a tirania do Estado; o liberalismo se apropria desse discurso para defender o individualismo exacerbado e competitivo que fundamenta o capitalismo, sendo conivente com a tirania informal que ele enseja. Essa diferença é importante quando a gente debate sobre a publicidade dirigida às crianças, porque sempre tem alguém para usar o discurso à primeira vista libertário de que a “criança tem o direito de escolher” e “é opressivo que ela não possa obter informações sobre os produtos que são feitos para ela” para tentar atingir o objetivo liberal de buscar o lucro sem ter nenhuma preocupação ética ou legal em relação aos meios adotados para isso. A publicidade não se destina à informação. Não se trata de tomar conhecimento da existência de um produto ou serviço, entender a que ele se destina, ficar sabendo onde encontrá-lo, por que preço e o que mais for necessário para tomar uma decisão racional acerca de sua aquisição. A publicidade é um trabalho de convencimento. De, por exemplo, ligar a aquisição daquele produto ou serviço à satisfação de uma outra necessidade sua que não tem nada a ver com aquilo, ou, ainda, ligá-la a um aumento do seu valor como pessoa – especialmente como pessoa pertencente a um determinado gênero, classe social, casta, e por aí vai. Recomendo, a respeito disso (e de muitas outras coisas, todas muito interessantes), o documentário em minissérie Century Of The Self, de 2002. Dá para assistir pelo YouTube, legendado, inclusive. A publicidade, portanto, não favorece a liberdade de escolha, mas a reduz. Ela é feita para isso, esse é seu papel. A não ser que pretendamos colocar a “escolha” induzida, coagida e compelida no mesmo balaio da escolha deliberada, consciente e informada. O produto Y pode ser melhor e mais barato que o produto X, mas o produto X, se for lançado no mercado com uma campanha publicitária melhor, acabará sendo muito mais vendido – mesmo que o produto Y tenha sua disponibilidade divulgada tão ou ainda mais amplamente que a do produto X. “Propaganda é a alma do negócio” e todo mundo sabe disso. A resposta de produtores e comerciantes e publicitários diante do questionamento quanto à ética disso é fazerem-se de desentendidos. Dizerem que, excluídos os “eventuais abusos” (leia-se, os casos que configuram crime contra as relações de consumo – artigos 63 a 74 do Código de Defesa do Consumidor), vale tudo. Que o papel deles é tentar vender, dolus bonus e blablablá, e que o consumidor é que não pode se eximir de sua responsabilidade de, por conta própria, em plena correria do dia-a-dia, em meio a uma enxurrada de desinformação, pesquisar, se informar, separar o joio do trigo, comparar preços, procurar fontes independentes, etc. Dá para ver que a galera está na boa-fé, né? Na maior lealdade. E olha que ainda nem falamos da publicidade feita para crianças. A esse respeito, o CONANDA (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, órgão ligado à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República), publicou, em março deste ano, a Resolução n.º 163/14, segundo a qual se considera abusiva “a prática do direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança, com a intenção de persuadi-la para o consumo de qualquer produto ou serviço” (artigo 2º). Ou seja, não é uma questão de “eventuais abusos”. É uma questão de que direcionar publicidade a criança é sempre, necessariamente, abusivo. Exagero? Será? Segundo o artigo 37 do Código de Defesa do Consumidor, é enganosa a publicidade “capaz de induzir em erro o consumidor”; e é abusiva a publicidade que “se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança” (novamente lembrando que a publicidade enganosa ou abusiva é crime). Se a publicidade é eficiente o bastante (e ela é feita com esse objetivo) para influir sobre o discernimento da pessoa adulta, que chance teria o discernimento ainda incipiente de uma criança diante dela? O que não induz em erro uma pessoa adulta certamente induzirá uma criança. Uma pessoa adulta sabe que os bonequinhos do Lego que aparecem no comercial do brinquedo não se mexem sozinhos, sabe que não é possível que um tênis te faça pular metros e metros, que o brinquedo não inclui tais e tais componentes que aparecem no anúncio. Mas podemos dizer que uma criança sabe disso? “Ah, mas é para isso que existem os pais”, rebatem os defensores da publicidade. O que me traz ao meu segundo ponto. Acho interessante ressaltar a contradição no discurso que, de um lado, defende a liberdade de escolha das crianças e, do outro, fica martelando que “os pais querem repassar sua responsabilidade ao Estado” quando pedem a proibição da publicidade direcionada a ses filhes. Estabelecer que é responsabilidade dos pais controlar o consumo das crianças é reconhecer que, especialmente diante da publicidade, elas não seriam, sozinhas, capazes de escolha (deliberada, consciente e informada). E que, assim, quem vai escolher, no fundo, é a pessoa adulta responsável pela criança. Ora, se a responsabilidade e a escolha na verdade são dessa pessoa adulta, então por que se dirigir à criança, senão para instrumentalizá-la, para usá-la como ferramenta de pressão sobre os pais? Uma coisa é dizer que crianças são pessoas dignas de respeito, que suas vontades devem ser ouvidas e suas opiniões consultadas nos assuntos que lhes interessam. Outra coisa é usar esse respeito como fachada pseudo-libertária para acobertar o fato de que se pretende explorar suas fragilidades, predar sua ingenuidade. Foi com esse discurso esburacado e incoerente que, por exemplo, Mônica de Souza (filha do Maurício de Souza, cuja empresa fatura 2,7 bilhões de reais por ano com a publicidade envolvendo personagens da Turma da Mônica, de sua criação), em entrevista recente, atacou a resolução do CONANDA, dizendo que “a criança vai começar a consumir um produto que não é para ela, mas para um adulto”, já que continuaria vendo as propagandas feitas para as pessoas adultas. Engraçado, se basta qualquer propaganda para a criança querer consumir um produto, por que tem que haver uma propaganda específica para ela? E acaso a existência de propaganda específica para ela vai anular todas as outras propagandas? Traiu-se, ainda, ao final da entrevista, ao deixar escapar que o impedimento à publicidade estaria “destruindo os personagens”. Essa colocação me chocou. Então o único propósito deles era fazer a criança consumir, ou melhor, fazer “com que escolha aquele produto dentre outros”, como Mônica declarou? A ponto de eles serem “destruídos” por não poderem mais ser usados para esse fim? É para isso, então, que foram criados? Sem falar no adultismo que esbanjou nessa entrevista, falando que hoje “a criança manda na família”, que a criança “está percebendo a vulnerabilidade dos pais”. Pois é. A criança, essa criatura tirânica e maliciosa. Ninguém mais estranha isso em alguém que representa uma empresa que trabalha com o público infantil? A criança se sente confortada pelas imagens que reconhece com carinho. Sua adoração por aqueles personagens é muitas vezes sua primeira afirmação de autonomia, de um eu separado dos pais, com um gosto particular e pessoal. Usar isso para induzi-la ao consumo do que quer que seja – mesmo maçãs – para “tirar um trocado”, e daí usar a própria criança como escudo para defender essa prática é de uma falta de escrúpulos ultrajante. Quando pequena, eu adorava a Turma da Mônica. Já adulta, percebi o machismo (a “Turma Jovem”, recente, dá até medo), a apologia à violência como forma de resolução de conflitos, o bullying, as palmadas, o adultismo, a gordofobia... mas achei que, considerando os pontos positivos da publicação, como a inclusão de minorias, por exemplo, seria só uma questão de diálogo e conscientização. A postura hipócrita e mercantilista que a marca exibiu em relação à publicidade, no entanto, me fez pegar nojo desses quadrinhos para sempre. Enfim, felizmente, a Resolução do CONANDA e o Código de Defesa do Consumidor estão aí. Agora nos cabe cuidar para que saiam do papel – fiscalizar, denunciar, disponibilizar a informação a outrem. Proteger nossas crianças das pessoas que estão dispostas a se aproveitar delas para ganhar dinheiro. Afinal, é para isso que existem os pais.   *Meus agradecimentos a John Razen, pela sugestão do tema!