Hell’s Kitchen. Reality show em que cozinheiros competem entre si, com eliminações a cada episódio até que reste apenas um, a quem caberá o prêmio de se tornar chef executivo de algum dos restaurantes de Gordon Ramsay, chef inglês célebre tanto por seus feitos culinários quanto por seu temperamento explosivo e a generosidade com que distribui insultos ao seu redor.
Chega a ser impressionante como a estrela do show – o próprio Ramsay – pode, truculenta e arbitrariamente, falar e fazer o que quiser aos participantes, que, via de regra, aceitam tudo resignadamente. Mas não parece ser só o prêmio o que os motiva a tamanha docilidade; eles de fato parecem buscar a aprovação, o respeito e a aceitação de Ramsay (o que raramente conseguem). Os competidores se derretem ao ouvir dos lábios do famoso chef qualquer coisa que se passe remotamente por um elogio, e sofrem intensamente quando se tornam o foco de suas ofensas – o que, aliás, pode acontecer independentemente de mérito passado; um único e trivial erro pode render toda uma noite de exposição e humilhação. Nos bastidores, eles expõem lacrimosamente seus sentimentos, sendo muito frequente a vergonha por “ter decepcionado chef Ramsay”.
Em momentos de confraternização com os aspirantes a chef, no entanto, o mesmo homem exibe uma doçura que, não fossem as suas diatribes gravadas e amplamente testemunhadas, não seríamos capazes de acreditar que possivelmente viriam dele. É como se fossem duas pessoas diferentes, o furioso, ultrajante e intimidador Ramsay no restaurante durante a competição e o dócil, atencioso e agradável Ramsay de fora dela.
Interessantíssimo, além de extremamente bem dirigido e soberbamente atuado, o filme “A Hora Mais Escura” (“Zero Dark Thirty”, de 2012, dirigido por Kathryn Bigelow) mostra algo incomodamente semelhante. No filme são mostradas práticas de ‘interrogatório’ de suspeitos num campo de concentração americano. Depois de ser brutalizado, torturado, humilhado, cagado, ao prisioneiro é subitamente oferecido o “privilégio” de um banho, roupas limpas, e uma refeição digna (pelo tratamento de rotina ele seria alimentado por meio de um funil metido em sua garganta, pelo qual se despejaria alguma lavagem).
E ali, desperto do pesadelo da tortura para a bênção dos pequenos confortos do mínimo de dignidade de sua pessoa humana, suas lealdades repentinamente mudam. O torturador é um cara legal, que só quer que aquele sofrimento acabe. Não lhe traz nenhum prazer degradar o interrogado daquela forma, mas ele não tem nenhuma alternativa se este não lhe der as informações de que precisa. “Eu quero ser legal, eu quero te ajudar. Me ajude a te ajudar” é a mensagem.
Em 1973, um grupo de reféns num assalto a banco em Estocolmo chocou o mundo ao demonstrar lealdade – até carinho – em relação aos seus captores. Em seu esforço de sobrevivência durante o cativeiro, haviam passado a vê-los não como o motivo por estarem naquela situação, mas como pessoas cuja “benevolência” os havia mantido vivos. Aparentemente, ao assumirem como seus os objetivos e valores de seus sequestradores, deslocaram para si a responsabilidade pelo que lhes ocorresse (“se eu me portar conforme o esperado, ficarei bem”), e passaram a sentir-se mais seguras, mais no controle, menos vítimas. Cunhou-se a partir daí o termo “Síndrome de Estocolmo” para definir casos semelhantes, e especula-se até mesmo que ela tenha um papel importante no treinamento militar, por exemplo.
É hoje moda falar sobre bullying. Mas fala-se muito como se fosse um fenômeno espontâneo, que partiria da própria criança. Já há quem fale do bullying cometido pelo professor em relação ao aluno, mas ainda é raro que se veja a correlação entre o bullying sofrido dentro de casa, no âmbito da própria família e o bullying que acontece fora dela, perpetrado pela criança.
Ora, bullying pode ser basicamente definido como atos reiterados de violência física e/ou emocional. Que nome se dá então, à atitude de um pai ou uma mãe que constantemente batem, xingam e/ou gritam com seus filhos? Educação? Criação? Por quê?
Trata-se de uma relação obviamente desigual de poder (não apenas físico), em que ocorrem reiteradamente atos de violência física ou emocional. Por que, então, imagina-se que os nefastos efeitos físicos e psicológicos do bullying (que, aliás, muitas vezes se estendem por toda a vida do indivíduo) não seriam sentidos pela vítima desse tratamento? Por que se imagina que os ganhos em termos de uma suposta “disciplina” e “obediência” (leia-se “conformação de comportamento por medo”, seja de medo de punição, seja de não ser amado) compensariam esses outros efeitos?
Como solução para o bullying propõe-se conscientizar as “testemunhas silenciosas” (as outras crianças que o veem ocorrer sem fazer nada) e os bullys quanto às consequências de seus atos para a vítima e para a sociedade como um todo. Nada se fala de revisitar o bullying que já tradicionalmente ocorre dentro de casa, ou de se conscientizar as “testemunhas silenciosas” adultas de que impedir que um pai bata no filho não é “se meter na criação dos outros”; é impedir um abuso que não deveria ocorrer nunca, jamais.
Quando se é rotineiramente maltratado física ou emocionalmente por alguém maior e mais forte do que você, qual é a diferença entre ele ser seu pai ou outra criança ou adolescente?
Na verdade, há uma diferença. A diferença é que você ama seus pais. Que você desesperadamente quer sua aprovação, aceitação e respeito. Seu amor. Só que isso, longe de tornar a situação melhor, a torna muito, muito pior. Porque não é só que você está nas mãos de um bully - você ama seu bully. E isso torna cada humilhação sofrida ainda mais dolorosa, mais desesperadora, na medida em que se tende a voltar a raiva pela agressão contra si mesmo e não contra o agressor ou agressora.
Aliás, confusa, a criança os defende. Já que sua compreensão de mundo depende de tudo o que seus pais fazem ser “bom” e “certo”, a consequência lógica é a de que ela própria é “má” e “errada”. Não ocorre a ela o horror do tratamento violento que ela recebe. Ela que fez o que não devia, que falou o que não devia... muito como muitas vezes ocorre com a mulher presa em um relacionamento abusivo, a desproporcionalidade e absurdidade da reação de quem a agride não lhe é sequer compreensível. Lidar com a sensação de desamor que essa noção lhe traria é simplesmente insuportável naquele momento.
Não raro, na tentativa de não sentir esse desamor, ela abafa todos os seus sentimentos a respeito, classificando-os como “bobagem”, dizendo para si mesma que seu sofrimento é ilegítimo, que “não é motivo para chorar”, que “não é nada demais”.
E, claro, se você dá a essa criança ou adolescente (ou adulto) a oportunidade de “virar a mesa”, de assumir, ela própria, o papel de seus pais bullies, de extravasar seus sentimentos de inadequação e humilhação ao impô-los a outras pessoas, se você lhe oferece uma válvula de escape para todo o ódio e ressentimento que ela não se permite sentir de seus pais, ela raramente irá rejeitá-la.
Eu não conheço Gordon Ramsay. Nunca li sua biografia. Mas não me admiro ao ouvir que seu pai era um homem violento e cruel.