Numa terça-feira ordinária de 2021, uma mulher dobra uma esquina às 18h34 para comprar uma caixa de sabão em pó. Faz um certo frio de outono e uma garoa poreja. Na calçada, há um homem deitado, mais uma pessoa em situação de rua com as características mais ou menos óbvias: preto, pobre, velho. O homem solta um líquido viscoso pela boca e rola para o outro lado.
A mulher, meia-idade e apressada, tem um sobressalto: catarro? [COVID!] saliva com espuma [CONVULSÃO!!!!!].
A mulher liga para os socorristas da cidade onde mora. Num primeiro telefonema, todos são educados e solícitos. Informações básicas: nome, idade, aspectos gerais da ocorrência médica. Em 10 minutos, o telefonema de um médico, de fato: repete-se a descrição e, a esta altura, a mulher em questão consegue respirar aliviada: morto não está, uma vez que responde ao chamado. Se for uma convulsão, ele talvez não sufoque com a própria língua, pois está deitado de lado. A Covid-19 é sempre a hipótese mais certeira: essa esquina está localizada em São Paulo, a menos de 1 km do Hospital Emílio Ribas.
Já está escuro e a mulher, que não é profissional de saúde, sobe ao seu apartamento para pegar mais um casaco. Outono, nessa cidade, tem disso: mudanças bruscas de temperatura e umidade quase que a cada quatro horas. O outro morador de rua que está sempre por lá, mais jovem, ajuda a ver se a ambulância está chegando.
Já se passou uma hora e, agora, está definitivamente de noite. A garoa começa a virar uma chuva fina. O homem deitado na esquina, agora, responde melhor e consegue dizer seu nome. Alguém leva uma coberta, outro vizinho deixa uma garrafa de água.
Meia hora depois, ele, mais aquecido apesar do concreto frio, consegue dizer seu nome e sobrenome. Tomou a água, levantou a cabeça e, agora, só quer dormir. Hipótese: ele está bêbado e vomitou.
A noite avança e ambulâncias sobem a Teodoro Sampaio céleres, mas nenhuma para nessa esquina. Ligar para o serviço de assistência social, tentar o 156, tratar aquele que atende com respeito e prestar a informação correta – regras aprendidas desde cedo e consolidadas pelos anos de experiência. Nada disso faz alguém se preocupar com o homem idoso que vai passar outra noite na rua numa noite que pode chegar perto do limite de temperatura que faz a municipalidade se mobilizar para não amanhecer com pessoas hirtas (MORTAS) de frio.
A esta altura, a mulher que não pertence a nenhum grupo prioritário e cuja faixa etária vê a vacina se afastar em direção à primavera, tem um frasco de álcool em gel em cada bolso da calça, celular dentro da mochila, canetas de cores variadas, um caderno nas mãos. Já ligou para quem podia ajudar e quem não podia. A única coisa que parece inamovível – e era – é a decisão de não arredar o pé enquanto o homem não estiver sendo levado para ter atendimento médico adequado e uma cama para poder dormir com conforto e calor.
Às 21h30, finalmente aparece a ambulância. Ainda exigem do grupo que aguarda o resgate que: a) o senhor concorde em ser resgatado (sim, ele quer sair da rua, senhora); b) que a mulher se responsabilize pelo fato de ter chamado socorro médico para um idoso que só deve precisar ser hidratado e talvez tomar um dramin para dormir com mais conforto; c) que ela pare de gritar como uma louca de impaciência e de impotência.
Essa mulher sou eu e, exceto alguns adjetivos exagerados, isso aqui é apenas o relato de quatro horas passadas na noite da última terça-feira, 13 de abril, a 100 metros de minha casa.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.