OPINIÃO

Indo para Elx – Por Esther Rapoport

Ainda bem que a parada no caminho era longa e pude descobrir Elche (ou Elx no dialeto valenciano), declarada pela UNESCO como Patrimônio da Humanidade. Sabe daquelas surpresas inesperadas? Pois é. Elx foi assim .... Eu conto!

A cidade de Elche (ou Elx no dialeto valenciano).Créditos: Wikimedia Commons
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Eu estava na Espanha, indo para Murcia, mas tive que pegar um ônibus em Alicante para chegar em Elche e fazer conexão de trem para meu destino final.

Ainda bem que a parada no caminho era longa e pude descobrir Elche (ou Elx no dialeto valenciano), declarada pela UNESCO como Patrimônio da Humanidade. Sabe daquelas surpresas inesperadas? Pois é. Elx foi assim .... Eu conto!

Aqui se encontra uma interessante herança árabe na Península Ibéria: o maior “palmeiral” da Europa. Criado para transformar esta região muito árida em um oásis, tem ainda muitos vestígios do período de ocupação muçulmana, como ruínas de castelos, torres de proteção, banhos árabes e o próprio palmeiral, desenvolvido com tecnologia moura de aproveitamento das águas. 

A Espanha, assim como Portugal, tem o traço mouro em seu DNA, que sempre aparece, mas nem sempre percebemos, pela sua beleza e grandeza. Para entender melhor o que foi a ocupação moura (muçulmana) na Península Ibérica, fui estudar e descobri coisas para lá de fascinantes, que exponho a seguir.

Aprendemos na escola que os árabes invadiram a Península Ibérica a partir do ano 710-711, e por ali estiveram até o final do século XV (1492). Primeiro erro, não eram os árabes porque embora muçulmanos, não eram nascidos na Península Arábica. Eram povos de origem norte africana, e foram chamados de Mouros ou Sarracenos.

De qualquer forma, foram sete séculos de presença muçulmana/moura na Península Ibérica, e deste período se fala pouquíssimo, os estudos são superficiais, parece até que os espanhóis (católicos) queriam apagaram estes séculos da sua história oficial. Parece não, apagaram mesmo, num superesforço para esconder um dos períodos (senão o maior) mais iluminados da história da Espanha. 

Conto o que descobri.

Primeiro, os mouros conseguiram ocupar a Península inteira em pouquíssimos anos. Estudamos que foi uma guerra contra os visigodos. Mas foi muito rápida essa vitória, o que levanta muitas dúvidas sobre o que de fato aconteceu, e o que pode explicar essa fácil penetração dos mouros pelo estreito de Gibraltar até a França. Parece não ter sido uma guerra, como o que a gente ouviu, mas uma penetração com apoio dos habitantes, que viviam um período de grande decadência. Os mouros foram recebidos de braços abertos porque eles traziam uma possibilidade de futuro, frente ao decadente domínio visigodo.

Vou resumir as inovações e progresso que os mouros implementaram na paisagem ibérica. Começando pela tecnologia, sistemas eficientes de irrigação. Lembrando que eram povos que vieram de zonas desérticas (os que viviam próximos ao Saara e os que aprenderam com seus colonizadores árabes, procedentes da também desértica Península Arábica), a água era um recurso extremamente precioso e eles desenvolveram diversas estruturas de conservação de fontes, irrigação e distribuição deste líquido precioso. 

Junto com o sistema de irrigação, plantas novas como a tal da palmeira de Elx, mas também o limão, a laranja, o abacate, o damasco e a romã, para não colocar a lista toda. 

Mas a preocupação com o acesso à água não estava restrita apenas à agricultura. Os mouros desenvolveram sistemas de água corrente e esgotos nas residências e nos inúmeros banhos públicos espalhados pelas cidades, mudando o panorama urbano e os hábitos, afinal era necessário se lavar antes de fazer as 5 rezas diárias previstas.

Depois vem o papel. É, eles trouxeram da China o know how do papel, para substituir o pergaminho, e como isso fizeram uma revolução na educação, cultura, na distribuição do conhecimento e da informação. O papel era mais barato e mais fácil de ser produzido. Vale lembrar que o muçulmano tem que ler o alcorão e isso torna obrigatória a alfabetização desde cedo e em todas as classes sociais. Um contraste com a tradição católica, que mantinha o conhecimento fechado dentro das abadias, lembra?

Se tem papel, tem livros e os árabes inundaram as cidades ibéricas com bibliotecas. Inundaram também as línguas locais com vocabulários novos. Tanto o espanhol como o português estão repletos de palavras árabes (o inglês também!!). Quase todas que começam com “a” e “al” são árabes (Abade, acácia, açafrão, acelga, acerola, acertar, açoite, açougue, açúcar, açucena, açude, aduana, alambique, alarde, alaúde, alazão, alcachofra, alcaparra, alcateia, alcatrão, alcatifa, alcatra, alcatraz, álcool, alcorão, alcova, alcunha, aldeia, alecrim, alface, alfafa, alfaiate, alfândega, etc, etc, etc) e tem também magazine, magnetismo, marfim, máscara, mascate, masmorra, massagem, naftalina, naipe, níquel, nora, oxalá, papagaio, quilate, quintal, recife, redoma, refém, safra, taça, tacho, talco, tambor, tanque, tarefa, tarifa, varanda, xadrez, xarope, zênite e zero, que além da palavra, trouxe também o conceito do ZERO, que eles aprenderam com os indianos, que não existia nos números romanos!! (De forma hiper resumida, sabe o que significa o Zero na cultura ocidental? A representação do vazio, que vai possibilitar a criação do sistema binário, 0 e 1, e as linguagens computacionais!!)

Tantas palavras e tantos textos. E sobre o que escrevem? Sobre tudo. Releem os gregos, reinterpretam e reelaboram conhecimentos, que serão a fonte para um dos movimentos mais importantes da “Ocidentalidade”, que marcará o final da Idade Medieval, mas já já falo disso. 

Os mouros trouxeram a astronomia para a Europa. Eles eram grandes navegadores e ensinaram as futuras gerações de espanhóis e portugueses a enfrentar o mar e atravessar o Atlântico no que será conhecido como o período das grandes navegações. Sabem qual foi a motivação para desenvolver o astrolábio e a bússola? Estando tão longe, no ocidente, a necessidade de conseguir localizar Meca para suas orações diárias!

Medicina. Para quem leu o Físico, não conto nenhuma novidade, já que a Medicina no mundo Oriental na Idade Média sempre foi muito mais desenvolvida do que no Ocidente. Os primeiros compêndios sobre o corpo humano e tratamentos para diversas doenças foram descritos por médicos orientais, egípcios, árabes e persas, levados ao Ocidente com estes imigrantes muçulmanos.

Matemática. Básico, não é? Os números arábicos, que usamos até hoje, em troca dos romanos. Assim ficou muito mais fácil fazer contas e além de facilitar o comércio, influenciou outras áreas do desenvolvimento humano. Uma delas, a arquitetura. Com a matemática e o cálculo, os palácios construídos pelos mouros encantavam, não só por sua finíssima decoração, mas pela harmonia do conjunto, porque eram planejados obedecendo um jogo matemático de proporções, retângulos que obedeciam a uma proporção entre eles, uma coisa genial.

Falando de construções, tenho que falar dos azulejos e toda a técnica da cerâmica trazida do oriente e que ainda hoje é um símbolo dos países ibéricos. Afinal, de onde vieram os famosos azulejos lusitanos?

Os mouros trouxeram outra novidade na relação entre propriedade e ocupação do solo: o aluguel de terras. Quem tinha terras podia alugar para quem quisesse produzir, em troca de uma parte da produção. Não era necessário ter a posse da terra, e isso estimulou o aumento da produção agrícola.

Vocês estão percebendo como a chegada dos mouros trouxe desenvolvimento para a Península? Como resposta veio a conversão para o Islamismo de grande parte da população e assim podemos entender por que essa “invasão” aconteceu de forma tão rápida e durou tanto. O Islão era uma cultura da inovação, melhorou a qualidade de vida dos povos da península e permitia a interlocução entre muçulmanos, judeus e cristãos. É verdade também que quem não se convertia ao islamismo tinha que pagar impostos, que não eram pagos pelos muçulmanos... uma certa forcinha para convencer tantos ... Mas, se permaneceu por tantos séculos, era pelo apoio das populações que se sentiam beneficiadas, protegidas e inseridas nessa nova cultura.

Mas os reinos cristãos ao norte queriam recuperar as terras do centro e do sul da península e usando como desculpa a questão religiosa, iniciaram a guerra da Reconquista, que sempre nos foi apresentada como uma cruzada heroica contra os infiéis, mas que não tinha outro interesse além do material, de ocupar e dominar terras e povos, recrutando, inclusive, mercenários muçulmanos! Lembram do El Cid? Pois é, vocês vão ficar decepcionados, mas ele era mouro! A palavra “Cid” é árabe e que dizer “mestre”. Viu como a gente tem que ter cuidado com a informação!

A Guerra de Reconquista foi, na verdade, uma guerra civil, que durou uns 300 anos. A sociedade moura era muito sofisticada e por isso pouco preparada para se defender em uma guerra, já os cristãos não tinham nada a perder e entraram arrasando o terreno e tentando apagar a história. Curiosamente, na medida que iam conquistando cidades e governos, os cristãos repetiam o modelo árabe, tantos nas regras de controle (se dando títulos de Califa ao invés de Rei) como nas construções, que imitavam completamente os palácios mouros.

E às populações ibéricas muçulmanas não foram dadas muitas opções: conversão ao catolicismo ou expulsão, e nesse momento começou um dos movimentos mais cruéis do cristianismo: a inquisição espanhola.

Alguns parágrafos atrás eu mencionei a importância árabe em um dos movimentos mais importantes da história da civilização ocidental, que marcará a transição do período medieval para a Idade Moderna. Sabem qual é? O Renascimento.

Todo mundo aprendeu que o Renascimento aconteceu na Itália, certo? Quase ... Na verdade ele aparece de forma mais madura na região fiorentina, mas o embrião deste pensamento racional foram os mouros que produziram, e foi na Espanha, na cidade-estado de Toledo, entre os séculos XII e XIII, quando lá se reuniam muçulmanos, judeus e cristão, intelectuais de toda a Europa, para juntos ler e traduzir (em equipe) do grego para o latim, textos de pensadores gregos, entre outros. Era o centro cultural mais efervescente do Ocidente, é de lá saíram ideias e documentos que alimentaram o Renascimento italiano.

Como vocês perceberam, o universo cultural-artístico-urbano e histórico mouro é fascinante e eu acabei me estendendo muito nesse capítulo, mas volto à Elx e de lá devo seguir para Murcia.  

Murcia .. o que dizer de Murcia??

Hummm ... nada ...

Ah, tem uma belíssima catedral e o show do Les Luthiers, motivo pelo qual fui à Murcia, foi bem legal. Esse show foi, na verdade, uma ótima desculpa para chegar em Elx e, pessoalmente, descobrir um capítulo fundamental da História, escondido e esquecido dos livros escolares.

Por isso eu viajo! 

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum

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