A designer Anís Samanez e José Forteza, editor sênior da Vogue América Latina, enfrentam um turbilhão de críticas após declarações polêmicas durante um debate sobre apropriação cultural.
O episódio dialoga com questões bem brasileiras. Como, por exemplo, um embate ocorrido em 2017 sobre o uso de turbantes por pessoas brancas que eletrizou as redes sociais.
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Mas afinal, o que é apropriação cultural? Ela diz respeito a escolhas pessoais ou a manobras de mercado por empresas?
Entenda a polêmica peruana
A controvérsia no Peru gira em torno de comentários feitos por Samanez sobre sua interação com a comunidade Shipibo-Konibo e uma afirmação de Forteza de que essas comunidades enfrentam insegurança alimentar sem o apoio de designers. As declarações provocaram indignação e críticas nas redes sociais.
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A fala dos dois foi feita durante o evento Orígenes 2024, segunda edição do evento de destaque no cenário da moda sustentável no Peru, realizado em Lima entre os dias 28 de novembro e 1º de dezembro.
As declarações de Samanez e Forteza acenderam um debate nas redes sociais sobre o respeito às tradições culturais e a relação entre designers e comunidades originárias.
Troca ou apropriação?
Em um relato durante o evento, Samanez afirmou que a comunidade Shipibo-Konibo rejeitou uma proposta de troca cultural, pedindo 5 mil dólares como retribuição. A estilista declarou:
"Eu também sou peruana, nascer na costa não me faz menos peruana que eles. Somos exatamente iguais", afirmou.
O comentário foi amplamente criticado por desconsiderar os direitos das comunidades e minimizar sua autonomia cultural.
Forteza também gerou indignação ao afirmar que comunidades indígenas "morreriam de fome" sem o apoio de designers. A frase foi vista como desrespeitosa e desvalorizou o trabalho artístico e cultural das populações originárias.
Mea culpa depois da repercussão
Dias após a polêmica, o jornalista e a estilista fizeram o mea culpa e pediram desculpas.
Forteza, em uma postagem no Instagram, emitiu um comunicado em que admitiu que suas palavras foram "mal formuladas". Ele reforçou seu compromisso com a visibilidade e proteção das comunidades artesãs.
"Reafirmo meu compromisso com o respeito, a proteção e a visibilidade dessas comunidades, que são pilares da nossa identidade."
Samanez também usou as redes sociais para pedir desculpas e reconheceu que se expressou de forma leviana. Ela reconheceu a gravidade de sua fala e lamentou o ocorrido.
"Amo profundamente nossa cultura e sempre busquei refletir esse amor em meus designs."
Desculpas rejeitadas
O estrago já estava feito e a líder da comunidade Shipibo-Konibo em Lima, Olinda Silvano, recusou as desculpas da dupla. Em entrevista ao programa América Hoy, a artista afirmou que o trabalho artístico de sua comunidade é um patrimônio cultural que merece respeito e remuneração justa.
"Nossas peças podem levar mais de um ano para serem feitas. Esse é nosso sustento", explicou.
Silvano destacou que as declarações de Samanez refletem falta de conhecimento e respeito pela complexidade e o valor do trabalho artesanal indígena.
"Não somos pequenos. Somos profissionais ancestrais", enfatizou.
Treta do turbante no Brasil
O caso no Peru reacendeu discussões globais sobre apropriação cultural e remeteu à polêmica do uso de turbantes no Brasil em 2017.
A peça é um dos ícones da cultura afro-brasileira e esteve no centro de uma polêmica nacional após uma jovem, diagnosticada com leucemia, relatar nas redes sociais que foi constrangida por jovens negras a retirar o acessório por ser branca.
O episódio gerou intenso debate nas redes sociais, com visões polarizadas entre defensores da liberdade individual e aqueles que destacam o significado histórico e cultural do turbante.
Fato é que o Brasil tem uma relação ambígua com a cultura afro. Símbolos como o turbante são frequentemente apropriados em contextos de moda ou estética, enquanto a realidade social e histórica das populações negras é ignorada.
O simbolismo cultural
O turbante, além de acessório estético, carrega profundo significado cultural e religioso para as matrizes africanas. Para muitas comunidades, ele representa resistência e conexão espiritual.
Outros elementos da cultura negra, como capoeira, samba, jazz e hip-hop, passaram por processos semelhantes de apropriação, sendo valorizados apenas após sua adoção por pessoas brancas.
Nos Estados Unidos, o termo "whitewashing" descreve essa dinâmica, onde a cultura negra é reembalada e comercializada sem reconhecer suas origens.
Diversidade de uso de tecidos na cabeça
O uso de panos na cabeça é uma prática presente em diversas culturas ao redor do mundo, servindo a propósitos religiosos, culturais, sociais e estéticos.
Aqui no Brasil, especialmente nas religiões de matriz africana como o Candomblé e a Umbanda, o "ojá" é um pano de cabeça usado tanto por homens quanto por mulheres. Ele possui significados religiosos profundos, representando a conexão com os orixás e a ancestralidade africana.
Nas culturas da África Ocidental, especialmente entre os iorubás na Nigéria, o "gele" é um turbante tradicional usado por mulheres. Ele é confeccionado com tecidos firmes e coloridos, sendo utilizado em ocasiões especiais como casamentos e festivais. A forma de amarrar o gele pode indicar o estado civil ou a posição social da mulher.
Na Índia, o "pagri" é um turbante tradicionalmente usado por homens, variando em estilo, cor e forma conforme a região e a casta. Além de proteger contra o sol, o pagri simboliza honra e respeito. Entre os sikhs, o turbante é um símbolo religioso que representa igualdade e devoção espiritual.
Em países do Oriente Médio, muitas mulheres muçulmanas utilizam o "hijab", um véu que cobre os cabelos e o pescoço, deixando o rosto à mostra. O "niqab" é outro tipo de véu que cobre o rosto, deixando apenas os olhos visíveis. Essas práticas são fundamentadas em preceitos religiosos e culturais, representando modéstia e identidade religiosa.
Os tuaregues, povos nômades do deserto do Saara, utilizam o "tagelmust", um véu que cobre a cabeça e, frequentemente, o rosto dos homens. Além de proteger contra o sol e a areia, o tagelmust é um símbolo de respeito e dignidade, sendo parte integral da identidade cultural tuaregue.
Esses exemplos ilustram a diversidade e a riqueza cultural associadas ao uso de panos na cabeça, evidenciando seus múltiplos significados e funções em diferentes sociedades ao redor do mundo.
Apropriação cultural por pessoas e empresas
A apropriação cultural pode ser analisada de diferentes formas, dependendo de quem a pratica. Pode ser praticada por indivíduos e por empresas.
No caso dos indivíduos, ocorre quando uma pessoa de fora de uma cultura adota elementos significativos dessa cultura (como vestimentas, músicas, símbolos ou práticas) sem compreender ou respeitar seu significado original.
Geralmente está ligada a escolhas pessoais, como usar roupas, adereços ou adotar práticas culturais de um grupo ao qual a pessoa não pertence.
Pode ser visto como ofensivo quando trivializa ou descontextualiza elementos de uma cultura que sofreu ou ainda sofre marginalização.
Entretanto, algumas pessoas argumentam que a adoção individual pode ser uma forma de apreciação ou troca cultural, desde que feita com respeito.
Por exemplo, usar um cocar indígena como fantasia de Carnaval sem entender seu significado espiritual e sua relação com a identidade dos povos originários.
No caso de empresas, a apropriação cultural ocorre quando são usados elementos de uma cultura em produtos ou campanhas publicitárias com fins lucrativos, muitas vezes sem a devida autorização ou compensação às comunidades que originaram esses elementos.
Casos de apropriação cultural por empresas estão frequentemente associados à exploração comercial de culturas marginalizadas, sem reconhecimento ou retorno financeiro para as comunidades afetadas. Essa prática amplifica o desequilíbrio de poder, já que grandes corporações lucram com algo que pertence a um grupo que frequentemente não tem recursos ou acesso para se beneficiar igualmente.
Além disso, a apropriação cultural corporativa contribui para a descaracterizar elementos culturais ao transformá-los em modismos ou mercadorias. É o caso de muitas marcas de moda que vendem roupas inspiradas em estampas indígenas, como no caso do Peru, ou africanas, sem atribuir crédito ou compensar financeiramente os povos que criaram tais designs.
Relembre casos
Osklen (2016)
Venda de camisetas com a palavra "Favela" para um público de classe média e alta. A marca brasileira foi criticada por transformar um símbolo de luta em um item de luxo, desconsiderando a realidade das comunidades.
Dior (2019)
Lançamento de coleção de bolsas e roupas inspiradas no "traje mexicano". A marca de luxo francesa foi criticada por lucrar com elementos culturais mexicanos sem crédito ou colaboração com artesãos locais.
Urban Outfitters (2012)
Venda de itens com estampas e acessórios inspirados na cultura nativa estadunidense. A grife dos EUA foi criticada pelo uso de cocares e símbolos sagrados como itens de moda, sem permissão das comunidades indígenas.
Gucci (2018)
Modelos brancos usando turbantes em desfile de moda. A marca francesa foi acusada de apropriação de um símbolo cultural associado à resistência e empoderamento de comunidades negras.
Victoria’s Secret (2012)
Apresentação de modelos usando cocares indígenas em desfiles de lingerie da marca do EUA. O episódio foi considerado ofensivo devido ao significado espiritual e cultural profundo dos cocares.
Louis Vuitton (2012)
Criação de roupas inspiradas em cobertores tradicionais da tribo Navajo. A grife de luxo francesa foi acusada de apropriação de elementos culturais com peças vendidas a preços exorbitantes, sem envolvimento da comunidade Navajo.
Marc Jacobs (2016)
Uso de dreadlocks em modelos brancos durante desfile. O estilista estadunidense foi acusado de apropriação de penteados que simbolizam resistência e história na cultura negra.
Isabel Marant (2015)
Uso de designs tradicionais da comunidade indígena Mixe, do México, em sua coleção. A estilista francesa foi acusada de plágio de padrões têxteis únicos, sem compensação ou reconhecimento da comunidade.
Adidas (2020)
Lançamento de sandálias inspiradas nos "huaraches", calçados tradicionais mexicanos. A marca de origem alemã foi acusada de exploração de elementos culturais sem colaborações adequadas com artesãos locais.
Chanel (2017)
Venda de um bumerangue de luxo por US$ 1.325. A grife de luxo francesa foi acusada de apropriação de um objeto tradicional dos aborígenes australianos, descontextualizado e inacessível para o público original.