O processo de reciclagem de garrafas PET para uso na indústria têxtil é uma alternativa equivocadamente vendida como sustentável ao transformar resíduos plásticos em fibras utilizáveis para a confecção de tecidos.
Essa prática de usar lixo da indústria de bebidas volta e meia é anunciada como uma "solução verde” para a redução de resíduos plásticos. Trata-se de uma mentira deslavada.
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Moda não recicla o próprio lixo
A especialista em tecidos Ana Scalea chama a atenção para o fato de que a despeito dos inúmeros desafios de resíduos enfrentados pela indústria têxtil e de moda, o setor ainda abraça a ideia de lidar com lixo de outro setor, que é o de bebidas.
“Acho que garrafa PET é problema da indústria de bebidas, a moda não recicla o próprio lixo! Mas, se for uma opção para substituir o poliéster virgem é ‘menos pior’. E usar nas peças que seriam feitas em poliéster mesmo, tipo cabedal de tênis, tecidos para decoração e impermeáveis, como roupas fitness”, observa.
Scalea oferece um curso sobre tecidos e usa bastante suas redes sociais para disseminar informação de qualidade sobre tecidos.
Resíduos da moda
Para ilustrar o que diz Scalea, basta ponderar sobre como é conduzida a gestão de resíduos na indústria têxtil, que é um desafio significativo, dado o volume e a diversidade de materiais descartados ao longo do processo produtivo.
Para mitigar os impactos ambientais e promover a sustentabilidade, diversas estratégias podem ser adotadas dentro do que a moda produz e sem abraçar os problemas de outro setor produtivo, como o de bebidas.
1. Redução na fonte: Implementar técnicas de corte mais precisas e otimizar processos de produção para minimizar a geração de resíduos desde o início. O planejamento eficiente do corte de tecidos, por exemplo, pode reduzir significativamente as sobras.
2. Reutilização e reciclagem: Aproveitar retalhos e sobras de tecidos para criar novos produtos ou reciclar materiais para a produção de novas fibras.
3. Upcycling: Transformar resíduos têxteis em produtos de maior valor agregado, como acessórios ou peças de vestuário exclusivas, promovendo a economia circular.
4. Tratamento de efluentes: Implementar sistemas de tratamento de efluentes para remover contaminantes dos resíduos líquidos gerados durante a produção, garantindo que a água descartada atenda aos padrões ambientais.
5. Parcerias com empresas especializadas: Colaborar com organizações especializadas na gestão de resíduos para garantir a destinação adequada e sustentável dos materiais descartados.
A adoção dessas práticas não apenas reduz o impacto ambiental, mas também pode gerar benefícios econômicos, como a redução de custos operacionais e a criação de novas oportunidades de negócios. Além disso, demonstra o compromisso da indústria têxtil com a sustentabilidade e a responsabilidade socioambiental. O que ainda é apenas uma ilusão.
Garrafa PET é uma gota no oceano da moda
A designer de moda e professora Rafaella Lacerda pondera que o uso de poliéster feito de PET reciclado na moda ainda é restrito, principalmente para peças de vestuário.
Graduada em Produtos da Moda e pós-graduada em Fashion Design, é mestre em Design pela Universidade de Brasília (UnB), onde desenvolve pesquisas voltadas para a aplicação de biomateriais no design de moda, com ênfase em sustentabilidade e na mitigação dos impactos causados pelo uso excessivo de plástico e seus derivados na indústria da moda.
Desde 2016, atua como docente no curso de graduação em Design de Moda do IESB, contribuindo com sua expertise para a formação de futuros profissionais da área
"O PET reciclado puro é mais utilizado em acessórios, mochilas, carpetes e itens de decoração para interiores. Quando se trata de roupas, ele geralmente precisa ser misturado, com composições que combinam 50% de PET reciclado com 50% de poliéster tradicional, o que melhora a qualidade das peças", explicou.
A especialista enfatiza a importância de ampliar a reciclagem e o reaproveitamento de plásticos no país e destaca que há muitos estudos e relatórios sobre o tema, mas os dados variam conforme a região e o mercado analisado.
O preocupante uso excessivo de sintéticos
Lacerda chama atenção para o uso indiscriminado de materiais sintéticos na indústria têxtil e em outros setores.
"O poliéster é indispensável em alguns casos, como cintos de segurança, capas de chuva e mochilas que exigem resistência. No entanto, acabamos utilizando esse material em situações onde não é realmente necessário", explicou.
Como professora, ela enfatiza a importância de conscientizar os alunos sobre o uso responsável desses materiais.
"Estimulo meus alunos a pensarem de forma crítica e utilizarem sintéticos somente quando há uma real necessidade, em vez de produzir qualquer coisa com eles, como tem acontecido atualmente", contou.
O impacto do uso excessivo de sintéticos também é destacado.
"Hoje, 70% das nossas roupas são feitas de materiais sintéticos. Além disso, os interiores das casas estão repletos de itens como couro sintético de poliuretano, pisos vinílicos, carpetes e cortinas, que também liberam microplásticos no ambiente", apontou.
A professora citou um estudo alarmante sobre o volume de microplásticos inalados diariamente.
"Respiramos microplásticos, tanto pelo uso de roupas sintéticas quanto em ambientes internos com grande presença de tecidos sintéticos. É assustador", concluiu, reforçando a necessidade de repensar o uso desses materiais.
Atlas do Plástico
O Atlas do Plástico, um dos levantamentos citados por Lacerda, foi publicado pela Fundação Heinrich Böll e traz uma análise detalhada sobre o impacto ambiental do uso de plásticos em diferentes indústrias, com destaque para o reaproveitamento de garrafas PET no setor têxtil.
Segundo o documento, a produção de tecidos sintéticos, como o poliéster, tem aproveitado o material reciclado de garrafas plásticas, promovendo sua reutilização. No entanto, o relatório alerta para os desafios associados a essa prática.
Embora o reaproveitamento de PET para a produção de fibras sintéticas seja alardeado como uma solução sustentável, o Atlas destaca que grande parte dessas fibras acabam contribuindo para a contaminação ambiental.
Durante a lavagem de roupas feitas de poliéster, microplásticos são liberados, poluindo os sistemas hídricos e representando uma ameaça significativa à vida marinha e à cadeia alimentar.
Outro ponto de crítica é que apenas uma fração do plástico consumido globalmente é reciclado, sendo que o foco no reaproveitamento para tecidos pode desviar a atenção de soluções mais efetivas, como a redução do consumo de plástico na origem.
Além disso, o Atlas aponta que a reciclagem de PET para o setor têxtil não resolve o problema da dependência de combustíveis fósseis, já que a produção inicial do material permanece ligada ao petróleo.
O relatório conclui que, embora a prática de reciclagem seja importante, ela precisa ser acompanhada por políticas de redução de plásticos descartáveis e pela promoção de tecnologias mais limpas, tanto na fabricação quanto no descarte de produtos.
LEIA AQUI O ATLAS DO PLÁSTICO
Os desafios de poliéster de PETs
O poliéster, que é o resultado dessa reciclagem de garrafas PET para serem transformadas em tecidos, é a fibra mais utilizada na indústria global da moda e representa aproximadamente 51% da produção mundial de fibras têxteis.
Essa predominância se deve às suas características como durabilidade, resistência a rugas e custo relativamente baixo, tornando-o uma escolha popular para diversas aplicações têxteis. No Brasil, o cenário é semelhante, com o poliéster ocupando uma posição significativa na produção têxtil nacional.
Ao usar garrafas PET para produzir poliéster o primeiro problema é a qualidade e durabilidade desse tecido de plástico. Essa fibra de vasilhames de plástico reciclados, na maioria das vezes, apresenta qualidade inferior em comparação à produzida a partir de materiais virgens. O que resulta em tecidos menos duráveis e com desempenho reduzido, o que afeta a longevidade das peças confeccionadas.
A reciclagem de garrafas PET para uso têxtil requer processos rigorosos de limpeza e descontaminação. Contaminantes residuais podem comprometer a qualidade do produto final e limitar suas aplicações.
A eficácia da reciclagem depende de sistemas eficientes de coleta e separação de resíduos. No Brasil, a baixa cobertura de coleta seletiva e a informalidade do mercado de materiais recicláveis dificultam a obtenção de matéria-prima de qualidade para a reciclagem de PET.
Embora a reciclagem reduza a necessidade de produção de plástico virgem, o processo em si consome energia e recursos. Além disso, a lavagem intensiva necessária para a reciclagem de PET pode aumentar o consumo de água.
Muitos especialistas argumentam que o uso de PET reciclado na moda pode ser uma solução superficial, desviando a atenção de questões mais profundas, como o consumo excessivo e o descarte rápido de roupas. A prática pode ser vista como uma forma de "greenwashing" se não estiver acompanhada de mudanças estruturais na indústria da moda.
Epidemia de microplásticos
A ampla utilização do poliéster na moda tem profundas implicações ambientais, especialmente devido à liberação de microplásticos durante a lavagem de tecidos desse material. Estima-se que a moda seja responsável por 20% a 35% do fluxo de microplásticos para os oceanos.
Estudos indicam que uma carga típica de 6 kg de roupas pode liberar aproximadamente:
- 137.951 fibras de tecidos mistos de poliéster e algodão.
- 496.030 fibras de tecidos 100% poliéster.
- 728.789 fibras de tecidos de acrílico.
Essas microfibras são pequenas o suficiente para passar pelos sistemas de tratamento de esgoto e alcançar ambientes aquáticos.
Essas partículas infestam mares, oceanos, rios e lagos e impactam de forma cruel ecossistemas aquáticos, contribuindo para a poluição ambiental. Isso sem falar do microplástico presente no corpo humano.
Estima-se que 35% dos microplásticos encontrados em ecossistemas marinhos, como as zonas costeiras, originam-se de microfibras sintéticas liberadas durante a lavagem de tecidos.
Microfibras de poliéster foram detectadas no trato digestivo de diversos organismos marinhos, incluindo peixes e moluscos. A ingestão dessas partículas pode causar danos físicos e liberar substâncias tóxicas, afetando a saúde dos animais. Além disso, ao entrarem na cadeia alimentar, esses microplásticos podem representar riscos potenciais à saúde humana.
Microplástico no corpo humano
Diversos estudos têm identificado a presença de microplásticos no corpo humano, destacando os potenciais riscos à saúde.
Partículas de microplásticos em diversos órgãos humanos, incluindo estômago, fígado e rins. Os pesquisadores alertam para os possíveis impactos dessas partículas na saúde humana.
Outro estudo identificou, pela primeira vez, microplásticos no cérebro de indivíduos residentes em São Paulo. A descoberta levanta preocupações sobre os efeitos dessas partículas no sistema nervoso central.
Há ainda uma pesquisa que indica que microplásticos podem atravessar barreiras biológicas e alcançar o cérebro, potencialmente causando distúrbios cognitivos. O estudo foi realizado em modelos animais, mas levanta questões relevantes para a saúde humana.
Esses estudos evidenciam a onipresença dos microplásticos no ambiente e sua capacidade de se acumular no corpo humano, ressaltando a necessidade de pesquisas adicionais para compreender plenamente os impactos na saúde.
Ao reciclar garrafa PET para criar mais tecido de plástico, a indústria da moda passa a lidar com um problema que não é dela e vender uma ilusão verde de que essa prática é uma alternativa ao gigantesco passivo da moda no meio ambiente. Não é. Trata-se de uma mentira deslavada e reciclada.
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