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[caption id="attachment_143533" align="alignnone" width="700"] Foto: Reprodução/YouTube[/caption]
Após a vitória de Jair Bolsonaro nas eleições de domingo (28), o escritor e jornalista Marcelo Rubens Paiva escreveu um artigo, que foi publicado no The New York Times. Paiva aborda a vitória do candidato de extrema direita no Brasil e reflete sobre as consequências diretas dos atos da ditadura militar em relação à sua família. Acompanhe a íntegra do artigo:
O que a ditadura brasileira fez para minha família
A morte de meu pai lança luz sobre o que o futuro do Brasil pode ter agora
Por Marcelo Rubens Paiva*
Jair Bolsonaro, um populista de extrema direita, foi eleito presidente no domingo. Enquanto processava essa nova realidade, olhei pela janela e vi os fogos de artifício comemorativos iluminarem o céu noturno. Ao longe, vi um dos apoiadores de Bolsonaro segurando uma placa que dizia: “Ustra vive”.
Foi uma lembrança arrepiante do nosso passado. De 1970 a 1974, Carlos Alberto Brilhante Ustra foi o chefe do DOI-CODI, a agência de inteligência responsável por reprimir os críticos durante o regime militar. Ele supervisionou a tortura de dissidentes políticos enquanto eles foram detidos pela polícia secreta.
A ascensão de Bolsonaro foi impulsionada pela raiva e desilusão das pessoas, decorrente de uma enorme investigação sobre corrupção de vários anos que derrubou o país, uma taxa de homicídios que é muito alta e uma economia agitadíssima. Não importava a muitos que sua retórica inflamatória denegrisse as mulheres, assim como os gays, negros e indígenas, ou que ele falasse com carinho de tortura e ditaduras. De fato, estima-se que 43% da população seja a favor dos militares que intervêm nos assuntos do governo. Eu acho que os brasileiros esqueceram o que significa ser governado a mão armada.
Meu pai era deputado pelo Estado de São Paulo e socialista. A junta militar revogou seu mandato após o golpe de 1964 e voltou a trabalhar como engenheiro civil. Eu tinha 11 anos quando ele foi preso, junto com minha mãe e minha irmã. Era uma manhã ensolarada em janeiro no Rio de Janeiro em 1971, e estávamos nos preparando para ir à praia do Leblon, que ficava do outro lado da rua da nossa casa. De repente, seis homens armados vestidos com roupas comuns entraram pela porta dos fundos e entraram na cozinha, apontando metralhadoras. Lá fora, mais homens cercavam a casa.
O governo havia interceptado cartas e documentos de organizações esquerdistas que foram enviadas ao meu pai de dissidentes no Chile. Eles pensaram que ele tinha um papel na organização da distribuição de correspondências e informações para exilados no Brasil e fora do país. Naquele dia de 1971, meus pais estavam em trajes de banho quando os homens armados invadiram a cozinha. Eles levaram meu pai para o andar de cima para que ele pudesse se vestir enquanto todos nós estávamos sentados no sofá da sala de estar. Foi-lhe dito que os agentes que esperavam do lado de fora iriam levá-lo para que ele pudesse dar seu testemunho. Nunca mais o vimos.
Os seis homens ficaram conosco pelas próximas 24 horas. Então eles levaram minha mãe, Eunice, e minha irmã Eliana, que tinha 15 anos na época, para a instalação do DOI-CODI no Rio de Janeiro, dentro da sede do Exército na rua Barão de Mesquita. Minhas outras irmãs, Ana Lucia, 13, e Beatriz, 10, e eu fomos deixados sozinhos.
Minha irmã e minha mãe foram assediadas e intimidadas. Elas sentaram-se encapuzadas por 24 horas, sem comida ou água. Um orador estava tocando “Jesus Cristo”, uma canção de Roberto Carlos, sobre os gritos de um homem sendo torturado - provavelmente meu pai. Minha irmã foi libertada no dia seguinte. Mas minha mãe passou 12 dias em uma cela escura, usando as mesmas roupas que tinha no dia em que foi presa. Ela foi acordada durante a noite por guardas gritando, que a forçariam a olhar através de fotos de mulheres e homens procurados. Obrigado militar, por não matá-la.
Ao longo dos anos, ouvimos rumores sobre o que aconteceu com meu pai; que ele havia sido morto enquanto estava sendo torturado, que seu corpo havia sido cortado em pedaços. Mas foi em 2014, quando ex-agentes que testemunharam sua tortura depuseram ao Ministério Público, que finalmente tivemos uma informação oficial do que aconteceu.
Ele foi levado para o DOI-CODI no Rio de Janeiro, onde foi torturado. Morreu menos de 48 horas depois de ser preso. O promotor disse que a intenção dos militares era “infligir sofrimento físico e mental agudo, a fim de intimidá-lo e obter informações sobre os destinatários das cartas e documentos que lhe foram enviados”. Um ex-coronel do exército, Paulo Malhães, disse que recebeu uma ordem do exército em 1973 para desenterrar e descartar os restos mortais de meu pai. Nós nunca saberemos o que ele fez com eles. Eu nunca entendi por que minha irmã e minha mãe também foram presas. Ser torturadas com ele, se ele não falasse?
[caption id="attachment_143532" align="alignnone" width="550"] Foto: Arquivo Pessoal[/caption]
Depois que a ditadura terminou, em 1988, uma nova Constituição brasileira, conhecida como Constituição Cidadã, foi aprovada. Garantia direitos territoriais aos povos indígenas e quilombolas, descendentes de escravos afro-brasileiros. Também ampliou as proteções para outras minorias e condenou “preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Mas agora o Brasil parece pronto para retornar ao seu passado sombrio.
No período que antecedeu a esta eleição, houve um aumento na violência e homofobia alimentada pelas visões misóginas, racistas, anti-LGBT e antidemocráticas de Bolsonaro. A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo registrou mais de 130 casos de violência contra jornalistas em 2018. As suásticas foram pintadas nas paredes de toda a cidade. O Grindr, o maior aplicativo de rede social do mundo para homens gays, enviou uma mensagem de lembrete de segurança para usuários brasileiros que disse: “Após a recente eleição, membros da comunidade Grindr levantaram preocupações sobre o aumento do risco de violência. Tome as medidas necessárias para se manter seguro esta semana”.
Da ditadura, aprendemos a importância da democracia, da tolerância e do estado de direito. Os brasileiros não devem ser enganados, o senhor Bolsonaro não é o salvador que nosso país precisa. Eu achava que a vida de meu pai e o sofrimento da minha família e de muitos outros eram um capítulo essencial para ajudar o Brasil a refletir e evoluir. Nós nunca imaginamos que nossa luta e dor não serviriam para nada. Que nossa luta pelo direito de voto seria usada para transformar tudo de volta. Ore por nós.
*Marcelo Paiva é escritor e colunista do jornal O Estado de S.Paulo.