Misoginia

A culpa não é das mães - Por Thaís Cremasco

Culpar mulheres pelas tragédias nacionais é a forma mais antiga de absolver o Estado e os homens de suas omissões. Se misoginia fosse crime, Arthur do Val seria indiciado pela sua fala

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Thaís Cremasco, pós-graduada em direito do trabalho e previdenciário, conselheira da OAB/SP, é representante da delegação brasileira na OIT (Organização Internacional do Trabalho), presidente da Comissão de Relações Internacionais da Associação Brasileira de Advocacia Trabalhista (ABRAT) e cofundadora do Coletivo Mulheres pela Justiça.
A culpa não é das mães - Por Thaís Cremasco
A culpa não é das mães. Pablo Porciúncula / AFP

Arthur do Val já mostrou ao Brasil, mais de uma vez, o que pensa das mulheres. Em 2022, sua fala sobre as refugiadas ucranianas, tratadas como “fáceis” por estarem em situação de guerra, revelou o que há de mais cru no pensamento machista: a crença de que o sofrimento feminino é oportunidade para o desejo masculino. A fala lhe custou o mandato, mas não o constrangimento, porque quem acredita ter direito sobre o corpo das mulheres também acredita ter direito de julgá-las.

Agora, ele volta a atacar, desta vez não com conotação sexual, mas com o mesmo desprezo travestido de moralidade. Ao comentar a chacina no Rio de Janeiro, onde dezenas de jovens negros foram mortos, Arthur do Val culpou as mães. Disse que essas mães não souberam educar e que escolheram mal seus parceiros. A frase não é opinião: é misoginia pura. É a velha culpa materna que sustenta o patriarcado, aquela que faz da mulher o depósito de todas as responsabilidades e o destino de todas as culpas. Quando o Estado falha, quando a política mata, quando a polícia executa, é sempre a mulher, a mãe, a preta, a pobre, que deve carregar a cruz.

Essa fala é violenta porque transforma a desigualdade social e o genocídio da juventude negra em falha individual das mulheres. É mais fácil culpar uma mãe do que encarar um Estado que mata, uma polícia que extermina e um país que nunca deu oportunidades reais aos seus filhos. Essas mães, as que Arthur despreza, trabalham. Trabalham limpando as casas de quem as julga, cuidando dos filhos de quem as acusa. São as que acordam antes do sol, pegam dois ônibus, voltam tarde e ainda precisam cozinhar, educar e acolher. O Brasil tem mais de seis milhões de trabalhadoras domésticas, noventa e um por cento mulheres, a maioria negras. Elas são a base da pirâmide, o chão invisível sobre o qual se apoia a classe média que as culpa. Enquanto isso, 460 crianças por dia são registradas sem o nome do pai, e ninguém fala em pais que falharam.

No Brasil, a maternidade é uma penalidade social. As mulheres com filhos ganham, em média, 25% menos do que os homens com filhos. Quase metade das que retornam ao trabalho após a licença são demitidas em até um ano. A cada mulher que engravida, o mercado reage como se ela tivesse cometido um erro: penaliza, silencia, substitui. E ainda assim, são essas mesmas mulheres que seguram o país do cuidado. Sem elas, não há creche, escola, hospital, lar ou economia possível. O trabalho doméstico e de cuidado, aquele que ninguém vê, é realizado majoritariamente por mulheres. Elas cuidam de todos, mas ninguém cuida delas.

A desigualdade começa até mesmo na licença para cuidar. Enquanto a mulher tem direito a 120 dias, prorrogáveis em alguns casos, o homem tem apenas cinco, e acaba de ser aprovado o projeto de lei que amplia para 20 dias gradualmente em três anos. O Brasil está entre os países com menor tempo de licença-paternidade do mundo. A consequência é óbvia: reforça-se a ideia de que o cuidado é tarefa feminina, e o homem é apenas coadjuvante. Se queremos homens responsáveis, presentes e conscientes do seu papel, precisamos ampliar a licença-paternidade e ensinar que cuidar também é função deles. O homem que não aprende a cuidar é o mesmo que, adulto, culpa as mulheres pelas mazelas do mundo.

Culpabilizar as mães é uma forma de manter intacto o sistema que absolve os homens e o Estado. Onde estão os pais desses meninos? Onde está o poder público que não oferece escola em tempo integral, esporte, cultura e segurança? A ausência paterna e a omissão estatal são estruturais, mas o discurso machista prefere apontar o dedo para a mulher, porque é mais cômodo que questionar o poder. O Brasil é um país que cobra das mulheres o que nega a elas: oportunidades, tempo e dignidade. E quando elas falham em sustentar o insustentável, a sociedade as condena por não terem feito milagres.

E há um ponto que deveria chocar, mas já não choca mais: o número de mortos. Quando se diz que a maioria das vítimas era negra, a frase sai com naturalidade, como se fosse apenas uma estatística. É justamente aí que mora o problema. A cor das vítimas não é detalhe, é evidência de uma necropolítica racializada que define quem vive e quem morre. Quando jovens negros morrem em massa e o país busca culpadas entre as mães, o que se revela é uma estrutura que combina racismo e misoginia, transformando mulheres negras em bode expiatório de todas as falhas do Estado.

A fala de Arthur do Val não é apenas indecente, é simbólica da estrutura que culpa as mulheres e absolve o Estado, que culpa a mãe e absolve o assassino, que culpa o afeto e absolve a violência. Não, Arthur, a culpa não é das mães. Nem da sua, que certamente não deve aprovar os motivos que te levaram à Ucrânia. A culpa é de um país que mata seus filhos e ainda espera que as mães peçam desculpa por chorar.


Thaís Cremasco é advogada trabalhista, feminista e antirracista. Conselheira Estadual da OAB/SP, presidente da Associação dos Advogados Trabalhistas de Campinas (AATC) e colunista da Revista Fórum.

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