Bares Brasil afora VIII – Registro, Itaiçaba e Barreiras – Por Mouzar Benedito
Aconteceram em passeios ou viagens a trabalho por essas cidades. Já publiquei essas historinhas por aí...
Registro (SP)
Registro, no Vale do Ribeira, não tinha nenhum bar de minha preferência, quando fui fazer um trabalho na região, nos anos 1970. Cidade com grande colônia japonesa, tinha restaurantes com comida típica, que na época eu não apreciava. Agora gosto.
Depois de passar mais de uma semana enfiado no meio do mato conversando com artesãos e professoras rurais, sem beber nada de álcool (não porque não quisesse, era porque não tinha) fui para a cidade doido para beber umas e outras.
Um amigo, o Silvião, meu colega de trabalho, tinha ido me buscar. Pararíamos para almoçar em Registro. Estava um dia muito frio e chuvoso, a umidade parecia penetrar nos ossos, e achei que iríamos beber umas boas cachaças num boteco qualquer, mas ele me levou pra um restaurante japonês. E chegando lá foi logo pedindo saquê quente. Chiei: “Pô, Sílvio... Tem duas bebidas que eu não gosto: saquê e uísque...”. Sobre o saquê, bebido à moda tradicional, bem quente, serviria para esquentar a gente por dentro, ele argumentou.
Antes de pedir um sukyaki, prato japonês mais ocidentalizado, partimos para o ataque ao saquê. Traziam garrafinhas de louça aquecidas e mandávamos ver. Bebemos bem mais de um litro e falei: “Cacete! Não posso mais falar que não gosto de saquê. Agora só não bebo uísque...”. Uns anos mais tarde, bebi uísque também, em São Paulo, e considerei: “Não há mais bebida que eu não posso dizer que não gosto. Só não bebo chumbo derretido”.
Itaiçaba (CE)
Passei uma semana trabalhando em Itaiçaba, na beira do rio Jaguaribe, perto da foz. Na época, há décadas, era uma cidade muito pequena e nem tinha luz elétrica. E era quente! Muito quente! E bastava escurecer para a cidade se encher de sapos de todos os tamanhos. Saíam do rio e se espalhavam. Entravam inclusive nos botecos e ficavam ali como aqueles cachorros vira-latas do interior mineiro, pareciam estar à espera de que lhes jogassem alguma coisa para comer. Ninguém ligava pra eles.
Por causa do calor, eu andava descalço na rua sem calçamento e, no escuro, de vez em quando sentia aquela coisa mole debaixo de um pé. Havia pisado em um sapo.
Meu boteco preferido era um tipo quiosque na beira do rio.
No último dia em que estava lá, fui pro bar pouco depois de escurecer e estava totalmente vazio. Só eu de freguês, ocupando uma mesa num ambiente bem iluminado por alguns lampiões.
Pedi uma cerveja e um maço de cigarros. Beberiquei o primeiro gole e abri o maço, tirando aquele papel alumínio que tem em cima, enquanto um sapinho pequeno ficava parado ali, parecia estar me olhando. Torci o papelote e joguei no chão, distraído. O sapinho pulou nele como se tivesse pensado que era alguma comida, e ficou com aquele papel brilhante na boca, sobrando um pedaço de cada lado. Espichou a língua e o colocou no chão. Comecei a rir. Será que o sapo não conseguia diferenciar um pedaço de papel brilhante de um inseto ou qualquer coisa do tipo? Não dava tempo, pensei. Pulava nele e pegava e depois saberia se era comestível.
O sapinho continuou parado ao lado da mesa, enquanto eu acendia um cigarro ainda rindo. Depois de umas tragadas, bati a cinza no chão e lá se foi o sapinho mais uma vez: deu um pulo para pegar aquilo. E era uma cinza quente. Saiu pulando com as patas dianteiras batendo na boca... E concluí: a natureza, representada pelo sapinho, deu dois foras para mim em pouco mais de um minuto.
Barreiras (BA)
Esta, eu publiquei até num livro, e reproduzo integralmente aqui.
Barreiras, no oeste da Bahia, hoje é uma grande cidade. Na década de 1970 era pequena, e acho que bem mais bonita. Mariozinho e eu chegamos lá, pegamos um hotelzinho vagabundo para ficar uns dias e depois seguiríamos para o norte de Goiás, de ônibus, carona ou o que fosse, por estradas de terra quase intransitáveis.
Pouco antes de anoitecer, fomos tomar uma cerveja num bar na beira do rio, um lugar bonito, no centro da cidade. Na outra margem, de frente para o bar, havia uma fazenda com vacas, cabras e tudo mais. É que não havia ponte para atravessar o rio Grande da Bahia, e a cidade — até então — cresceu só na sua margem direita.
Ocupamos uma mesa não muito perto de outra ocupada por duas moças. Uma era baixinha, bonita, a outra alta e de porte atlético, com bundinha pequena e peito largo. Começaram a dar risadinhas para nós, e o Mário me chamou para atacar as duas.
— Eu não. De jeito nenhum — respondi.
— Por quê?
— Ora, é claro que você, baixinho, vai atacar a baixinha, que é bonitinha. A outra, esquisitona, vai sobrar pra mim.
Insistiu. Nem que fosse só pra quebrar o galho dele, eu tinha que atacar a outra moça. Acedi, mas com uma condição:
— Vou ficar quinze minutos com elas. No máximo, vinte. É o prazo pra você sair com a baixinha. Depois eu me pico.
Topou e lá fomos nós. Nos apresentamos, a grandona pegou a minha mão e disse com voz grossa:
— Muito prazer. Nilta.
Na hora, pensei: “Cacete, a mulher tem bundinha pequena, peito largo, voz grossa e chama-se Nilta”. E respondi:
— Igualmente. Olgo.
Pra uma mulher chamada Nilta, tinha que ser um homem chamado Olgo ou Auroro, pensei me lembrando de duas amigas com esses nomes. Conversei com ela enquanto o Mário cantava a outra e em uns quinze minutos mesmo ele saiu com a baixinha. Conversamos mais um pouco, tomamos mais uma cerveja e fui embora. Passeei um pouco pelas ruas e depois fui para o hotel.
Quando amanhecia o dia, antes das 6h da manhã, acordei com uma mulher varrendo o corredor e cantando. “Ô gente atrapalhada”, pensei, “isto é hora de varrer o hotel? E cantando!”. Antes de resolver se levantaria para reclamar, ela entrou no quarto, varrendo e cantando, na maior folga. Viu que eu estava acordado, olhou a outra cama e perguntou, com o típico sotaque baiano:
— Cadê baixinho?
Só então vi que ele não tinha vindo pro hotel. Respondi que não sabia. A mulher fez uma cara de preocupação e falou:
— Viiixxeee... Onde ele está?
— Sei lá... Ele saiu com uma menina...
— Mataram ele.
Saiu, deu um tempinho, quando eu ia dormindo de novo, ela entrou:
— Baixinho não voltou? — perguntou com o sotaque baiano.
— Não, porra! E me deixe dormir.
— Mataram ele!
Dali uma hora, entrou no quarto de novo, com a dona do hotel.
— Baixinho não voltou?
— Não, porra, já disse que não!
— Mataram ele!
— Mataram porra nenhuma, deve estar dormindo na zona.
A dona do hotel disse que era comum matar gente de fora e jogar no rio.
— Já deve estar longe, indo rio abaixo — falou com cara de medo e preocupação.
Depois de mais uma entrada delas no quarto, desisti de tentar dormir. Levantei e tomei café ouvindo as histórias da dona do hotel sobre homens que matavam para roubar. Fui ficando preocupado. Falei que ia à delegacia ver se por acaso ele estava preso e a mulher acabou me revelando a maior razão da sua preocupação com o baixinho: ela não registrava os hóspedes, para não pagar impostos, e o delegado andava ameaçando fechar seu hotel. Disse que ela tinha que fazer uma ficha para cada hóspede e pegar sua assinatura. E ela não havia registrado nós dois. Eu podia assinar a ficha ali, mas e o baixinho?
— Dessa vez ele fecha meu hotel! — ficou falando sozinha.
Dei mais um tempo pra ver se o Mário chegava, e nada! Lá pelas 9h30 fui à delegacia. Estava preocupado. Perguntei ao policial de plantão se por acaso haviam prendido um baixinho paulista.
— Faz quase uma semana que a gente não prende ninguém — respondeu.
Pedi pra dar uma olhada nas celas, ele não gostou da minha desconfiança, mas acabou permitindo. Fui de cela em cela, só numa havia um preso, que não era ele. Voltei preocupado para o hotel e contei à mulher.
— Mataram ele. Vão fechar o meu hotel — falou sozinha.
Minha preocupação aumentou. Resolvi ir à zona de prostituição ver se ele dormiu lá. Era uma rua inteira, com umas vinte casas. Fui de uma em uma. Imagine acordar puta às 10h da manhã! Ouvi todos os palavrões possíveis, sempre acompanhados da informação:
— Aqui não dormiu baixinho paulista filho-da-puta nenhum, seu filho-da-puta.
Aí sim, fiquei preocupado de verdade. Às onze e pouco da manhã, no hotel, ouvia a dona e a faxineira falarem “mataram ele” e já pensava que haviam matado mesmo. Como ia chegar a São Paulo e contar pra família dele? Fui ficando quase apavorado. Ao meio-dia, atravessei a rua e fui tomar uma cerveja pra ver se relaxava, enquanto pensava no que fazer. Pedi uma cachaça, que virei de uma vez só, e uma cerveja, que fui bebendo aos poucos e pensando se devia dar queixa já ou esperar mais um pouco. Fiquei na porta do bar olhando a rua, pensando no que poderia ter acontecido. De repente, vi que na porta do hotel ao lado do nosso, tão mambembe quanto o nosso, ia saindo um sujeito... o Mário, o baixinho. Filho da puta!
Xinguei bastante e o chamei pra tomar uma cerveja. Ele só descobriu o que tinha acontecido depois que se levantou e não viu sua mochila no quarto. À noite, tinha resolvido levar a moça para o hotel em que estávamos, para o nosso quarto, por sinal, e entrou no hotel errado. Pediu a chave do quarto 7, o porteiro não conferiu se ele estava hospedado lá, deu a chave, o Mário entrou com ela, de manhãzinha ela foi embora e ele continuou dormindo. Acordou quase meio dia e só aí viu que estava no hotel errado. Entregou a chave ao porteiro e saiu. Ninguém perguntou nada e nem cobrou nada dele.
— Êh, Bahia... Só aqui mesmo pra acontecer uma coisa dessas — foi a única coisa que pude dizer.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.