"Vale Tudo" chega ao fim com acertos, mas esvaziada politicamente e com protagonista escanteada
A adaptação feita por Manuela Dias conseguiu entreter, mas se afastou do debate ético e moral protagonizado pelas personagens Raquel Acioli e Odete Roitman
As personagens Odete Roitman (Debora Bloch) e Raquel Acioli (Taís Araújo) representam as alegorias para responder à pergunta central da trama: "Vale tudo para subir na vida?". Porém, a autora Manuela Dias abriu mão disso, escanteou a protagonista e fez de Odete "apenas" uma vilã... ambas completamente afastadas do embate moral e ético que marcou o texto de 1988, e que ainda segue atual, claro, com novas nuances e contextos.
Além de uma direção completamente errática de Paulo Silvestrini, "Vale Tudo" chega ao fim totalmente esvaziada politicamente, com a protagonista Raquel Acioli completamente escanteada. Da segunda metade em diante do folhetim, se a personagem fosse retirada, não faria a menor diferença. Esse é o principal problema do texto de Manuela Dias.
O papel de Raquel Acioli era justamente ser a antagonista de Odete Roitman, para, ao término da trama, servir como resposta do folhetim: "não, vale tudo para se obter dinheiro". Era função de Raquel desmascarar Odete e mostrar que sempre esteve certa quanto aos seus valores éticos, considerados excessivos por seus amigos. Porém, Manuela Dias preferiu escantear a personagem e torná-la totalmente sem sentido.
Até mesmo a trajetória de Raquel Acioli, que passa por vender lanches na praia e depois obter riqueza de maneira justa e ética, foi jogada na lata do lixo pela autora do remake. A protagonista foi escondida a tal ponto que, em determinado momento, ela não fazia mais parte da trama... só lembrávamos disso quando ela se encontrava com Maria Fátima (Bella Campos), sua filha, que após aplicar golpes em todo mundo, vive a ruína de uma vida sem ética e moral.
Lutas de classes no Brasil
Obviamente que ninguém queria apenas a reprodução do texto de 1988 de "Vale Tudo", mas algumas coisas ainda permanecem muito semelhantes com o Brasil retratado na primeira versão: saudosismo da ditadura, racismo e profunda desigualdade socioeconômica no Brasil. Se tais temas tivessem sido, de fato, abordados, provavelmente o fenômeno da novela teria sido ainda maior.
Os "Brasis" de 1988 e 2025 ainda travam uma intensa luta de classes. Essa batalha foi brilhantemente abordada na primeira versão e ficou totalmente de fora do novo texto.
Além disso, o Brasil de 1988 era tão polarizado quanto o de hoje... em diversas ocasiões, há discussões sobre fascismo e socialismo entre os personagens Ivan (Renato Góes), Afonso (Humberto Carrão) e Odete Roitman. Isso também desapareceu.
Ou seja, além do escanteamento de Raquel Acioli, toda a veia política do texto de 1988 foi completamente retirada do remake. Sendo assim, o texto de Manuela Dias conseguiu ser regressivo quando comparado com o de 1988, assinado por Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères.
Os acertos da nova "Vale Tudo"
Mas, apesar do esvaziamento político do texto, "Vale Tudo" chega ao fim com acertos e grandes momentos de entretenimento. Não à toa, caiu no gosto da audiência e se tornou conversa corrente.
Um dos principais acertos foi a construção de Odete Roitman, que ganhou uma versão espetacular com a atriz Debora Bloch, que, sem sombra de dúvidas, entregou uma de suas melhores atuações.
Também cabe destacar a química entre a tia Celina (Malu Galli) e Odete Roitman, que, nesta versão, ganhou mais corpo e mais senso de realidade e dramaticidade.
A personagem Heleninha, eternizada com memes na internet, também ganhou excelente construção com a atriz Paolla Oliveira, e a abordagem do vício em álcool foi perfeitamente conduzida pelo texto de Manuela Dias, que conseguiu colocar em tela o inferno da dependência química.
O núcleo capitaneado por Consuelo (Belize Pombal, que entregou uma atuação fenomenal) também foi um acerto, com um elenco de peso que conseguiu equilibrar o humor e o drama.
Outro ponto positivo da nova versão de Vale Tudo é a recriação de toda a trama que envolve o acidente que "matou" Leo (Guilherme Magon), o irmão de Heleninha, que, nesta versão, foi escondido por sua mãe, Odete. Essa mudança foi um baita acerto.
Quem matou Odete Roitman... e Raquel Acioli?
Manuela Dias também conseguiu aquilo que parecia impossível: recriar toda a mística em torno do assassinato de Odete Roitman. A autora embaralhou tudo, criou uma grande confusão e conseguiu colocar o debate entre os telespectadores, algo difícil de se fazer.
Além disso, cabe destacar a química perfeita entre Cauã Reymond, como César, e Ricardo Teodoro, como Olavo... simplesmente garantiram grandes momentos cômicos, representando também perfeitamente homens adultos vivendo um profundo complexo de Peter Pan.
Vale Tudo entregou entretenimento e grandes momentos, mas se perdeu completamente em sua segunda metade quando a autora simplesmente resolveu escantear a protagonista da trama, algo difícil de entender, que apagou a mística final da grande batalha moral travada por Raquel, que ficou isolada e conversando com as paredes.