OPINIÃO

Faltou a Toni Garrido a grandeza de um menino - por pastor Zé Barbosa Jr

Talvez o maior erro do cantor tenha sido esquecer que o menino de que falam os poetas não é o macho dominador, mas o ser humano antes de ser domesticado pelo poder, pela vaidade ou pela conveniência

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Teólogo, escritor, pós-graduado em Ciências Políticas e pastor da Comunidade de Jesus em Campina Grande - PB
Faltou a Toni Garrido a grandeza de um menino - por pastor Zé Barbosa Jr
Faltou a Toni Garrido a grandeza de um menino - por pastor Zé Barbosa Jr. Capa antológica do disco Clube da Esquina. Reprodução

Nos últimos dias, uma fala do cantor Toni Garrido no programa Altas Horas, de Serginho Grossman, acendeu debates acalorados nas redes sociais. Ao classificar como “hétero top machista” a frase consagrada na canção "Girassol": “já que pra ser homem tem que ter a grandeza de um menino”, o artista parece ter tentado surfar na maré das discussões identitárias que dominam o ambiente digital — mas acabou escorregando na incoerência. A tentativa de problematizar um verso que, na verdade, parecia remeter à pureza, à sensibilidade e à humanidade do masculino, soa mais como oportunismo do que como posicionamento político/histórico genuíno. Em tempo: gosto muito dessa e de outras canções da Cidade Negra. Fizeram parte de minha adolescência/juventude.

A música popular brasileira sempre soube lidar com a figura do “menino” como símbolo do sonho, da esperança e da ternura que resiste ao endurecimento da vida adulta. Milton Nascimento e Fernando Brant, em “Bola de meia, bola de gude”, falam desse menino que guarda lembranças, afetos e inocência, que se recusa a abraçar o cinismo e a “sacanagem normal” do mundo. Gonzaguinha, em “Um homem também chora (Guerreiro menino)”, dá forma poética à vulnerabilidade masculina, abrindo espaço para a emoção, o choro e a doçura. Lembro também da canção interpretada por Santanna, o Cantador, “Saudades de mim”, quando diz de forma lírica “garoto livre, menino de fato, moleque de mato, travesso e feliz”. E fecho com Gal, cantando Caetano, ecoa “Nasce uma criança entre nós homens. O menino aguenta. O menino salva. O menino é eu. O menino sou eu.”

Quando Garrido reduz a metáfora do “menino” a um estereótipo de masculinidade tóxica, ele desconsidera toda essa tradição poética e simbólica da MPB, tradição da qual ele mesmo é herdeiro e beneficiário. Sua fala soa deslocada, não apenas por ser intelectualmente rasa, mas por vir de quem, historicamente, sempre teve sua imagem associada à lutas sociais. É o tipo de discurso que parece mais preocupado em agradar o algoritmo do que em provocar reflexão real.

Há uma diferença gritante entre levantar uma bandeira e entender o que ela representa. A onda do identitarismo fácil transformou causas legítimas da verdadeira luta identitária, real e necessária, em performances vazias, em slogans de engajamento instantâneo. O problema é que, nesse teatro das boas intenções, a arte e o pensamento crítico perdem espaço para a lacração efêmera. Garrido, que já foi símbolo de uma MPB conectada com o povo e com o afeto, agora se apresenta como comentarista de si mesmo — preso à lógica das redes, onde a polêmica vale mais do que o conteúdo.

Talvez o maior erro do cantor tenha sido esquecer que o menino de que falam os poetas não é o macho dominador, mas o ser humano antes de ser domesticado pelo poder, pela vaidade ou pela conveniência. É esse menino — sensível, curioso, livre — que falta em muitos dos nossos homens, inclusive nos que se dizem desconstruídos. E talvez falte também em artistas que, para parecerem modernos, acabam renegando o melhor da tradição que os formou.

A grandeza de um homem, afinal, está justamente em não perder de vista o menino que um dia foi, assim como a da mulher em não perder de vista a menina que um dia foi, talvez até mesmo “uma garotinha, esperando o ônibus da escola, sozinha” — e que ainda ousa sonhar. O menino de Toni se perdeu. Deu lugar ao macho hétero top. E estragou tudo!

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum

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