Opinião

A diplomacia do capital - Por Rodrigo Perez

Será que um dos episódios mais importantes da história da diplomacia brasileira foi protagonizado pelos técnicos do Itamaraty, ou pela burguesia nacional?

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Nasceu no Rio de Janeiro em 30/01/1986, é historiador, tendo se formado na educação pública das primeiras letras ao doutorado. Vivendo em Salvador desde 2017, onde atua como professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia, o autor pesquisa a história do pensamento político brasileiro e os usos do passado no texto historiográfico e nas narrativas políticas, temas que foram explorados nos livros “As armas e as letras: a Guerra do Paraguai na memória oficial do Exército brasileiro”, publicado pela editora Multifoco em 2013, e “Conversas sobre o Brasil: ensaios de síntese histórica”, pela editora autografia em 2017.
A diplomacia do capital - Por Rodrigo Perez
The White House

Há algumas semanas, a ofensiva de Donald Trump contra o governo brasileiro era tamanha que muitos observadores cogitaram a possibilidade de as hostilidades escalarem até o nível das provocações militares. O receio era absolutamente verossímil, dada a presença de embarcações militares estadunidenses na região do Caribe. Quando escrevo este texto, circula pela imprensa internacional a acusação do presidente colombiano, Gustavo Petro, de que um barco de seu país teria sido bombardeado pela força naval dos EUA.

A forma como o presidente dos EUA tentava interferir nos assuntos domésticos brasileiros, utilizando o comércio bilateral como estratégia de chantagem, era algo inédito nas relações entre os dois países. A extrema-direita brasileira comemorou as manifestações do poderoso aliado, jactando-se da influência que supostamente teria no Salão Oval da Casa Branca, por meio da atuação do blogueiro Paulo Figueiredo e do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL/SP).

Por sua vez, o governo Lula adotou estratégias distintas: para o mercado político interno, o discurso da defesa da soberania nacional, acompanhado da tentativa de retomada dos símbolos nacionais, há anos sob o controle ideológico do bolsonarismo; já para o mercado externo, a ênfase recaiu sobre a diplomacia e a busca pela negociação, tentando mitigar os efeitos do tarifaço de Trump sobre a cadeia produtiva brasileira.

Dentro do Brasil, os movimentos do governo mostraram-se bem-sucedidos, com o presidente finalmente saindo da defensiva depois de meses bastante difíceis, marcados pela crise do PIX, pelo escândalo do INSS e pelos excessos de deslumbramento da primeira-dama, o que fez a popularidade de Lula despencar, chegando aos impressionantes 33%, segundo levantamento da Genial/Quaest feito em abril. Fora do país, a situação parecia bem mais difícil, pois o grupo de trabalho liderado pelo vice-presidente Geraldo Alckmin encontrava os canais de diálogo fechados, com a comitiva suprapartidária de parlamentares passando vergonha em Washington, enquanto Bolsonaro e Figueiredo afirmavam controlar o acesso a Donald Trump. As expectativas, de fato, eram as piores possíveis.

Foi assim, nesse ambiente horrível, que o presidente Lula chegou a Nova York, em 22 de setembro, para participar da 80ª Assembleia Geral da ONU. No tradicional discurso de abertura, o mandatário brasileiro reforçou o posicionamento que já vinha manifestando à imprensa internacional, apresentando-se como defensor da soberania nacional e como antagonista político de Donald Trump, ainda que tenha se mostrado disposto a discutir os termos do comércio externo entre os dois países. Todos esperavam a réplica agressiva de Trump, acostumado a praticar bullying com outros chefes de Estado. Para surpresa geral, Trump elogiou Lula, dizendo ter “rolado uma química” entre eles, após um breve encontro no backstage . Com seu já conhecido senso de circunstância, Lula devolveu a piscadela, confirmando ter mesmo “rolado” a tal “química”.

Seria uma estratégia diversionista para desmontar o discurso político de Lula e preparar o bote final, como afirmaram os bolsonaristas? Ou será mesmo que o carisma do presidente Lula é tão arrebatador a ponto de, em poucos minutos, seduzir aquele que até então era um contundente adversário ideológico, como ventilaram os petistas? Nem uma coisa nem outra. Trata-se de interesses muito concretos envolvendo empresários e chefes de Estado de duas nações capitalistas. A história do capitalismo mostra que a verdadeira química sempre acontece entre desejos econômicos complementares.

Logo no dia 25 de setembro, a Folha de S. Paulo ajudou a esclarecer a situação. Semanas antes da Assembleia da ONU, o megaempresário brasileiro Joesley Batista foi recebido na Casa Branca pelo próprio Donald Trump, numa manifestação explícita daquilo que vem sendo chamado de “diplomacia do capital”. Consigo imaginar Joesley diante de Trump, colocando os números no papel, mostrando a irracionalidade dos ataques alfandegários ao Brasil e como isso impactaria a economia dos EUA, inviabilizando investimentos da JBS na planta industrial do país, além dos desdobramentos inflacionários para os consumidores estadunidenses. Certamente, Joesley não foi o único empresário a utilizar os números para atenuar os rompantes ideológicos de Trump.

Antes de se tornar um prócer da extrema-direita global, Trump era capitalista, um expert na arte de fazer dinheiro com dinheiro, enquanto Jair Bolsonaro sempre foi um loser, parasita do erário público, representante do patrimonialismo tão odiado pela ideologia do self-made man. Sob essa perspectiva, a movimentação de Trump não surpreende tanto, principalmente se levarmos em conta o fato de que Lula é o mais habilidoso gestor que o capitalismo periférico brasileiro já teve.

A ver os desdobramentos deste enredo, pois os bolsonaristas insistem que tudo isso não passa de uma “jogada de mestre” de Trump para enganar Lula. Por enquanto, parece que um dos episódios mais importantes da história da diplomacia brasileira não foi protagonizado pelos técnicos do Itamaraty, mas sim por aqueles que, em um vocabulário um tanto anacrônico, eram chamados de “burguesia nacional”.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

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