OPINIÃO

Da Justiça do Trabalho à Comissão Interamericana: a luta contra a pejotização

Na prática, a pejotização cria uma realidade perversa: o trabalhador, subordinado e dependente, é tratado como empresário de si mesmo, sem garantias, sem férias, sem 13º, sem FGTS, sem amparo previdenciário

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Thaís Cremasco, pós-graduada em direito do trabalho e previdenciário, conselheira da OAB/SP, é representante da delegação brasileira na OIT (Organização Internacional do Trabalho), presidente da Comissão de Relações Internacionais da Associação Brasileira de Advocacia Trabalhista (ABRAT) e cofundadora do Coletivo Mulheres pela Justiça.
Da Justiça do Trabalho à Comissão Interamericana: a luta contra a pejotização
Protesto da OAB-SP contra pejotização. Cadu Pinotti/Agência Brasil

A denúncia apresentada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos contra a pejotização no Brasil revela uma chaga que há muito tempo corrói silenciosamente o mundo do trabalho. Essa prática, travestida de inovação e vendida como modelo moderno de contratação, não é nada além de uma fraude estrutural que mina os direitos humanos e constitucionais, retira do trabalhador sua rede de proteção e fragiliza o pacto social erguido pela Constituição de 1988.

O direito ao trabalho não é apenas o direito de ter uma ocupação remunerada. Ele foi consagrado em nossa Constituição como direito social e fundamento do Estado Democrático, e é reconhecido em tratados internacionais de direitos humanos como a Declaração Universal e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. O trabalho digno implica salário justo, proteção social, descanso, previdência e segurança. Quando empresas obrigam trabalhadoras e trabalhadores a constituírem pessoas jurídicas para mascarar vínculos empregatícios, o que ocorre é um esvaziamento desses direitos, que passam a existir apenas no papel. Na prática, a pejotização cria uma realidade perversa: o trabalhador, subordinado e dependente, é tratado como empresário de si mesmo, sem garantias, sem férias, sem 13º, sem FGTS, sem amparo previdenciário.

Os impactos não ficam restritos ao indivíduo. Ao invisibilizar relações de emprego, a pejotização enfraquece a Seguridade Social e compromete o financiamento da Previdência. Essa lógica corrói a rede coletiva de proteção que garante direitos em situações de doença, acidente, desemprego ou aposentadoria. A cada trabalhador pejotizado, menos recursos entram no sistema, e mais se fortalece o discurso de que a Previdência é inviável. É um círculo perverso: reduz-se a base contributiva, argumenta-se com um suposto déficit e, sob esse pretexto, avançam reformas regressivas que retiram ainda mais direitos da classe trabalhadora.

É preciso compreender que a pejotização não é fruto do acaso, mas parte de um projeto político neoliberal que transfere riscos e responsabilidades ao trabalhador, enquanto preserva e amplia os lucros do capital. Trata-se de um modelo que transforma direitos em custos, desfaz a solidariedade social e impõe o individualismo como regra. O resultado é um trabalhador isolado, adoecido e desprotegido, chamado de “empreendedor” quando, na verdade, está submetido às mesmas ordens, pressões e jornadas de quem deveria ter sua relação reconhecida como emprego formal.

A provocação ao sistema interamericano é um marco histórico. Ao ser levada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a pejotização é reconhecida em sua verdadeira dimensão: uma violação de direitos humanos em escala coletiva. Essa denúncia desloca o debate da esfera restrita da Justiça do Trabalho e do Supremo Tribunal Federal para o campo internacional, onde o Brasil pode ser cobrado por descumprir compromissos assumidos em tratados de proteção social. Se avançar, a Comissão poderá reconhecer a gravidade do problema, e a Corte Interamericana, no futuro, poderá impor ao Estado brasileiro a obrigação de adotar medidas estruturais de proteção aos trabalhadores.

Essa movimentação internacional é fundamental porque obriga o Brasil a se olhar no espelho. O país precisa decidir se vai reafirmar o pacto democrático de 1988, que colocou a dignidade da pessoa humana no centro do Estado, ou se vai ceder definitivamente à lógica da precarização, onde cada trabalhador é abandonado à própria sorte. A resposta não pode ser neutra. A pejotização não moderniza, não flexibiliza, não melhora. A pejotização frauda, precariza, adoece e viola direitos humanos.

Defender a dignidade do trabalho é defender a democracia. A denúncia internacional mostra que o mundo está atento, mas a luta precisa ser feita aqui, em cada espaço de resistência. Porque, no Brasil de hoje, reafirmar que a pejotização é fraude é também reafirmar que sem trabalho digno não há justiça social, não há igualdade e não há futuro.

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