Príncipe Custódio: quem foi o homem que será enredo da Portela em 2026
Realeza africana no Brasil? Entenda mais sobre a vida do homem que popularizou as religiões de matriz afro no Rio Grande do Sul
Embora mais associadas ao Nordeste e ao Sudeste, as religiões de matriz africana — como o Candomblé, a Umbanda e o Batuque — também têm raízes profundas no Sul do Brasil, especialmente no estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, sua capital, abriga uma comunidade expressiva de praticantes dessas tradições, com uma rede de terreiros antigos e influentes.
Essa presença é fruto da resistência cultural dos povos africanos e afro-brasileiros, que, mesmo diante da escravidão e do racismo institucionalizado, preservaram e transformaram suas tradições religiosas, adaptando-as ao contexto sulista — onde o Batuque gaúcho se destaca como uma expressão afro-religiosa original e autônoma.
O precursor em Porto Alegre: príncipe Custódio Joaquim de Almeida
No início do século XX, uma figura singular despontou como pioneira na organização dos cultos de matriz africana em Porto Alegre: Custódio Joaquim de Almeida, conhecido como Príncipe Custódio. Nascido por volta de 1832 no antigo Reino do Benin (atual Nigéria), ele teria vindo ao Brasil como parte de um processo de exílio diplomático após conflitos entre sua etnia e forças coloniais britânicas.
Por tradição oral, dizia-se descendente da realeza africana, e o título de "príncipe" era usado com orgulho — embora haja pouca comprovação documental direta sobre sua linhagem nobre.
Um estilo de vida único
Estabelecido definitivamente em Porto Alegre por volta de 1900, Custódio tornou-se uma personalidade marcante. Residia em uma casa ampla na Rua Lopo Gonçalves, no bairro Cidade Baixa, onde realizava rituais, banquetes e festas com forte presença comunitária.
Vestia-se com elegância: trajes africanos mesclados com peças típicas do Sul, como poncho e bombacha. Andava em carruagem própria e mantinha cavalos de raça — alguns importados da Inglaterra. Era fluente em português, francês, inglês e línguas africanas, o que o tornava respeitado até mesmo pela elite branca e política da época.
Como babalorixá e líder do Batuque, Príncipe Custódio consolidou terreiros, assentamentos de orixás e locais sagrados, como o histórico Bará do Mercado Público, que existe até hoje. Atuava também como conselheiro informal de políticos, empresários e religiosos, funcionando como um ponte entre a comunidade negra e o poder público.
Sua longevidade — teria vivido até os 104 anos, falecendo por volta de 1935 — reforçou o caráter lendário de sua figura. Custódio tornou-se símbolo de resistência negra e preservação da ancestralidade africana em um território hostil ao culto aos orixás. Seu legado é mantido por descendentes espirituais e por historiadores que vêm resgatando sua trajetória nos últimos anos.
Controvérsias históricas: realidade ou mito?
Apesar da reverência, a figura de Príncipe Custódio também está cercada de contradições e lacunas históricas que dividem pesquisadores e religiosos:
1. Linhagem real: verdade ou construção?
Embora se autodenominasse príncipe e muitos o tratassem assim, não há provas documentais definitivas sobre sua origem nobre africana. Parte da historiografia recente acredita que o título era simbólico, conferido pela comunidade local como reconhecimento de sua autoridade espiritual e carisma. Outros acreditam que ele de fato pertencia a uma dinastia derrotada do Daomé e que teria sido exilado com proteção britânica.
2. Escravizado ou exilado diplomata?
Algumas fontes orais afirmam que Custódio chegou ao Brasil como escravizado; outras, que veio como diplomata africano exilado após acordos com autoridades coloniais. Existem relatos de que ele recebia pensão em libras esterlinas da coroa britânica — o que, se verdadeiro, indicaria status diplomático, não de escravizado.
3. Religião x política x economia
Alguns setores da elite branca porto-alegrense o admiravam, enquanto outros o viam com desconfiança. Era comum ouvir críticas ao seu estilo de vida “extravagante” e ao sincretismo religioso que promovia. Seus banquetes, seus cavalos e sua influência política despertavam curiosidade e incômodo em uma sociedade racista e conservadora.
Do terreiro à avenida: a Portela e o resgate em 2026
Em 2026, a Portela, uma das mais tradicionais escolas de samba do Rio de Janeiro, levará a história de Príncipe Custódio à Marquês de Sapucaí com o enredo “O Mistério do Príncipe do Bará – A oração do Negrinho e a ressurreição de sua coroa sob o céu aberto do Rio Grande”.
O enredo resgata não só o personagem, mas a memória coletiva da religiosidade afro-gaúcha e da presença negra no Sul — ainda pouco reconhecida nacionalmente. A homenagem também aborda as ambiguidades de Custódio, celebrando sua importância sem ignorar os conflitos que sua figura suscita.
Mais que um tributo, o desfile da Portela será um convite à reflexão: quem constrói a história? Por que certos personagens são celebrados e outros silenciados? A figura de Príncipe Custódio, com suas luzes e sombras, representa não apenas um líder religioso, mas a complexidade de ser negro, africano e livre em um Brasil que ainda digeria os escombros da escravidão.