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Protestos no Nepal: blindagem de Trump às big techs taca fogo no país

Esposa de ex-primeiro-ministro sofre graves queimaduras; 19 mortos em confrontos com forças de segurança e centenas de feridos

Protestos no Nepal: blindagem de Trump às big techs taca fogo no país.Esposa de ex-primeiro-ministro morre queimada viva; 19 mortos em confrontos com forças de segurança e centenas de feridosCréditos: Reprodução X
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No Nepal, Rajyalaxmi Chitrakar, esposa do ex-primeiro-ministro Jhalanath Khanal — que governou o país entre fevereiro e agosto de 2011 —, sofreu intensas queimaduras* nesta terça-feira (9) após ficar presa em casa durante um incêndio causado por manifestantes.

O país vive uma convulsão social desde que o governo bloqueou 26 plataformas digitais, incluindo Facebook e YouTube, por descumprirem exigências legais. O atual primeiro-ministro, K.P. Sharma Oli, renunciou após sua residência ser atacada, mas os protestos continuaram.

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Na capital, Katmandu, o Parlamento foi invadido e incendiado. Confrontos entre jovens e forças de segurança deixaram ao menos 19 mortos e centenas de feridos. A revolta se espalhou por outras cidades — como Biratnagar, Butwal, Chitwan, Pokhara e Itahari —, onde prédios públicos foram atacados e toques de recolher decretados.

Por que o Nepal baniu redes sociais?

A decisão que deflagrou os protestos violentos obrigava plataformas estrangeiras a registrar-se no Nepal, indicar representantes locais e criar canais para denúncias, sob pena de bloqueio.

O governo alegou combate a crimes digitais e discurso de ódio, mas a medida foi vista como censura. Entre jovens já indignados com corrupção e desemprego, a reação foi imediata: protestos massivos que logo se transformaram em revolta popular.

Diante da escalada da violência, o governo revogou a medida nesta terça-feira.

Trump e a blindagem das big techs

Enquanto o Nepal tenta impor regras mínimas para que gigantes digitais respeitem suas leis locais — e mergulha em protestos violentos após banir 26 plataformas —, nos Estados Unidos Donald Trump segue em direção oposta.

No mesmo dia do anúncio em Katmandu, o presidente recebeu na Casa Branca executivos como Mark Zuckerberg (Meta), Tim Cook (Apple) e Sundar Pichai (Google), em um jantar no qual comemorou investimentos bilionários e exaltou a tecnologia dos EUA.

Poucos dias antes, em 25 de agosto, Trump havia usado o Truth Social para atacar legislações digitais internacionais, como as da União Europeia. Segundo ele, essas medidas discriminam empresas dos EUA enquanto “dão carta branca” às companhias chinesas.

Em tom de ameaça, Trump avisou que os países que mantiverem esse tipo de regulação enfrentarão tarifas adicionais pesadas e restrições à exportação de chips e tecnologias de ponta.

Reprodução Truth Social

A mensagem é vista como advertência direta à Europa, mas também a países como Brasil e Nepal, que discutem maior regulação sobre plataformas digitais.

Protagonismo da Geração Z

A Geração Z do Nepal é protagonista das manifestações. Jovens nascidos entre meados da década de 1990 e o início de 2010 são a primeira geração a crescer em um mundo totalmente conectado, com internet, redes sociais e smartphones desde a infância.

Multiplataforma, comunicam-se em várias telas ao mesmo tempo e valorizam diversidade e inclusão, ligadas a pautas de igualdade racial, de gênero e sustentabilidade. Mas enfrentam obstáculos estruturais: alto custo da educação, empregos precários e extrema competitividade no mercado.

As redes sociais se tornaram, para eles, arenas de ativismo político e social. É onde se articulam e ganham visibilidade — seja em protestos climáticos globais, seja na revolta no Nepal após o banimento das plataformas digitais.

Esse protagonismo, no entanto, traz um paradoxo. Como primeira geração “online desde sempre”, combinam espírito crítico e engajamento com vulnerabilidade aos algoritmos das big techs dos EUA, que moldam comportamentos, influenciam percepções políticas e canalizam emoções coletivas.

A cegueira do Ocidente sobre a revolta no Nepal

Um dos jornais mais influentes do mundo, The New York Times, publicou uma análise sobre os protestos que incendiaram prédios públicos e residências — episódio que terminou com a morte trágica de dezenas de pessoas. O texto, porém, minimizou o papel das redes sociais, cujo banimento foi o estopim imediato da crise, e ignorou o impacto das políticas de Trump, que rejeita qualquer regulação internacional sobre as plataformas digitais.

Esse alinhamento com os interesses das big techs ajuda a explicar como empresas seguem imunes a responsabilidades em países em desenvolvimento, ampliando tensões sociais que explodiram de forma violenta no Nepal.

A revolta vai além da censura online: reflete o desemprego crônico (12,6% em 2024, sem contar os informais), a fuga em massa de jovens para trabalhos precários no exterior e a dependência das remessas, que já sustentam 26% da economia nacional.

Soma-se a corrupção endêmica — como o desvio de US$ 71 milhões na construção do aeroporto de Pokhara — e a frustração com uma elite política que, desde 2015, se revezou no poder entre apenas três líderes: Oli, Pushpa Kamal Dahal e Deuba.

Nesse contexto, a tentativa de controlar as redes sociais tornou-se símbolo de um mal-estar mais profundo: a falta de oportunidades, a corrupção estrutural e uma democracia que não entregou o que prometia.

Crise capitalista

A tragédia no Nepal expõe um dilema que ultrapassa suas fronteiras: a crise estrutural do capitalismo neoliberal. Entre jovens da Geração Z, a precariedade do trabalho, a falta de perspectivas e a desigualdade crescente alimentam uma revolta que, mediada pelas redes sociais, pode explodir em protestos violentos.

Ao mesmo tempo, os algoritmos que mobilizam para a contestação também abrem espaço para manipulação, amplificando discursos de ódio e fortalecendo projetos de extrema direita no mundo todo.

O caso nepalês não é apenas um retrato local, mas um alerta global: enquanto o neoliberalismo continuar a produzir frustrações e desigualdades, a juventude seguirá dividida entre dois caminhos — a insurgência por mudanças ou a captura por forças autoritárias que exploram o caos para ampliar seu poder.

* ERRATA - Atualização em 10/9, 16h30: ao contrário do que noticiou a imprensa nepalesa e agências internacionais de notícias nesta terça-feira (9), a esposa do ex-primeiro-ministro do Nepal, Jhalanath Khanal, Rabi Laxmi Chitrakar, está em tratamento e seu estado de saúde vem melhorando, informou o secretário pessoal de Khanal, Krishna Bhattarai, ao atualizar a imprensa sobre a situação.

Chitrakar sofreu graves queimaduras após sua casa ter sido incendiada, supostamente por manifestantes durante a atual revolta da Geração Z.

“A saúde de madame melhorou”, disse Bhattarai em entrevista ao jornal nepalês Kantipur Daily.

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