Na fábula de Hans Christian Andersen, “A Nova Roupa do Imperador”, uma criança grita que o rei está nu, escancarando a mentira dos adultos a adular o imperador. Como disseram que só as pessoas inteligentes enxergavam a roupa, ninguém queria parecer burro. Assim, todos admiravam a roupa inexistente. Até que o grito da criança pôs fim à farsa.
Nessa semana, no Brasil, as redes sociais gritaram que o rei estava nu, ou melhor, que os ricos pagam muito menos imposto do que os pobres em nosso país. Com isso, o Governo Lula conseguiu dar uma invertida nas lideranças do centrão e da extrema-direita que, seja por antecipar o ambiente eleitoral de 2026, seja por protestar contra as dificuldades na liberação das secretas emendas parlamentares no orçamento, suspenderam o decreto presidencial que modificara as alíquotas do IOF até o limite estabelecido em lei, como autoriza a Constituição.
O ministro Alexandre de Moraes querendo baixar a fervura e suscitando uma tentativa de conciliação, suspendeu os dois decretos, o de Lula e o do Congresso. A decisão não parece adequada à Constituição, uma vez que é indiscutível a competência do Poder Executivo para alterar as alíquotas do IOF, independentemente de considerações extrafiscais da medida. A extrafiscalidade se dá quando o objetivo primordial da norma tributária não é a arrecadação tributária, mas o estímulo ou desestímulo a uma determinada atividade do contribuinte. Por terem alguns tributos a feição predominantemente extrafiscal, possuem um regramento constitucional diverso, que os livra da anterioridade tributária, e permite as alterações de alíquota até o limite estabelecido em lei. Isso não significa, e a jurisprudência do STF é tranquila nesse sentido, que qualquer alteração de alíquota do IOF tenha que ter funções preponderantemente extrafiscais, até porque, todo tributo tem elementos extrafiscais e arrecadatórios, cuja predominância no caso concreto foge à apreciação jurídica, ficando no campo das Ciências das Finanças.
Embora a referida decisão judicial tenha sustentação mais política do que jurídica, não nos parece ser papel do STF, que não é poder moderador, arbitrar conflitos entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo. Sobretudo quando há invasão de competência de um por outro, como é o caso. O papel do STF é resguardar a Constituição, dizendo o que é constitucional ou não. E no texto constitucional assegura-se a competência do Poder Executivo para alterar as alíquotas do IOF até os limites estabelecidos em lei. A participação do Congresso Nacional nessa matéria é estabelecer um limite legal à tributação. Na prática, o Poder Executivo pode apenas determinar uma alíquota menor do que a definida pelo Parlamento, e alterá-la respeitado esse limite.
Porém, embora a decisão do ministro Alexandre de Moraes tenha pretensões salomônicas, não foi neutra. Do ponto de vista normativo, é favorável à invasão de competência perpetrada pelo Congresso, na medida em que, ao suspender o decreto presidencial e o decreto legislativo que o suspendera, retira da legislação do IOF as inovações desejadas pelo Palácio do Planalto. Porém, dada a repercussão que a medida do Congresso teve nas redes sociais, a suspensão dos dois decretos parece ser favorável ao prolongamento de um debate em que as forças progressistas estão nadando de braçada. Parece que o tiro da oposição saiu pela culatra.
As forças governistas e progressistas em geral conseguiram encaixar muito bem a narrativa de que Lula tenta promover a justiça tributária e enfrenta a resistência de uma legislatura que defende intransigentemente os interesses dos mais ricos. Era tudo o que o Lula precisava nesse período de pouco mais de um ano que antecede às eleições, em um cenário em que ele vem sendo acossado por ataques da mídia conservadora, do mercado, do centrão e da extrema-direita. Se vai conseguir enfrentar todos esses setores juntos, é uma incógnita. Já conseguiu outras vezes, e ninguém sabe fazer isso melhor do que ele.
E Lula e a esquerda têm um grande trunfo para o sucesso da empreita. É o Projeto de Lei nº 1.087/2025 que dá isenção de imposto de renda para os contribuintes que ganham até R$ 5 mil. Hoje esse limite é de R$ 2.259,20. De acordo ainda com o projeto, terão redução expressiva de imposto os contribuintes de rendimentos entre R$ 5 mil e R$ 7,5 mil. Para financiar essa dedução de receita, os contribuintes com rendimentos, tributáveis ou não, superiores a R$ 600 mil anuais, o que dá uma média mensal de R$ 50 mil, terão uma tributação mínima de até 10%. É uma maneira menos gravosa de tributar algo dos que se beneficiam pela isenção do imposto para lucros e dividendos. A medida é a principal proposta de reforma tributária, sob a bandeira da justiça fiscal, já encaminhada ao Congresso Nacional, já que é um grande alívio para cerca de R$ 36 milhões de contribuintes, custeado por um pequeno esforço por cerca de 100 mil pessoas mais ricas. Afinal, se os trabalhadores pagam 27,5% sobre os seus rendimentos, uma contribuição de 10% dos mais ricos, hoje isentos, não é nada de extraordinário.
Com o debate sobre justiça fiscal, a partir da demonstração de que os ricos quase não pagam imposto, as chances de aprovação da proposta se elevam substancialmente. O tema pode inclusive entrar como moeda de troca em relação ao IOF, matéria que parece que, independentemente do conteúdo da medida, virou um cabo de guerra político entre os Poderes em que ninguém quer sair derrotado.
O sucesso da campanha da esquerda nas redes sobre justiça fiscal oportuniza ainda revelar as contradições desse projeto de austeridade seletiva que o consenso dos ricos, formado por mercado-mídia-centrão-fascistas, impõe ao nosso país há muito tempo. E nesse contexto, algumas mentiras veiculadas por esse consenso estão sendo postas à luz do dia, como a que o governo está promovendo o aumento de imposto, de que estão sendo aumentados gastos de forma irresponsável, de que a economia vai mal. Parece que a inteligência artificial está, pela primeira vez, sendo usada pela esquerda para mostrar, com números e evidências, a realidade de uma economia que cresce, gera emprego, reduz a desigualdade com a inflação sob o controle, apesar das sabotagens parlamentares.
Os editoriais da grande mídia e os discursos das cabeças coroadas do Congresso Nacional já acusaram o golpe. Apesar disso, há finalmente um ambiente propício para revelar que o que o consenso dos ricos deseja não é um equilíbrio das contas públicas, cujo maior fiador no país nos últimos anos é o presidente Lula. O que desejam é transferir renda dos pobres para os ricos Assim, protegem benefícios fiscais e benefícios creditícios e financeiros que chegam a casa dos R$ 646 bilhões por ano, ou 34% da receita primária, fecham os olhos para R$ 626 bilhões de sonegação fiscal, que superam 5% do PIB, lutam visceralmente pelas emendas parlamentares, que totalizam R$ 61,7 bilhões, trabalham obsessivamente para preservação das metas de superávit fiscal que reservam para os credores do Estado mais de R$ 2 trilhões. E querem cortar o salário-mínimo, o bolsa-família, o BPC, os investimentos com saúde e educação, a previdência social. O que o consórcio dos ricos defende, na verdade, não é a opção por um Estado mínimo. E sim por um Estado que retire dinheiro e direitos fundamentais dos pobres para enriquecer, de forma cada vez mais espetacular, um número cada vez menor de pessoas. Fica claro que a reclamação quanto ao “nós contra eles”, vem na direção errada. Os ricos sempre se articularam contra os pobres, mas sabem guardar segredo. Mas agora as redes gritam que o rei está nu. E todo mundo passa a saber da verdade.
*Ricardo Lodi é ex-reitor e professor de Direito Financeiro da UERJ. É também 1º suplente de deputado federal do PT-RJ.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.