OPINIÃO

"Oruam não está só, mas nós, homens negros, estamos sozinhos" – Por Gabriel Siqueira

“Na bandeira do Brasil tá faltando uma cor, vermelho que é o sangue do morador. O estado estava só fazendo o seu trabalho, matando o inocente no morro do Santo Amaro"; Oruam, Fubá e Poze do Rodo

Oruam e Poze do Rodo.Créditos: Reprodução
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A perseguição a Oruam e Poze do Rodo como "novos inimigos do Estado" escancara mais um capítulo do extermínio histórico de homens negros entre 15 e 29 anos — faixa etária em que assassinatos e encarceramento em massa foram naturalizados como política de controle. Ao criminalizar dois dos maiores nomes do funk e do trap, o sistema promove um duplo genocídio: o físico, como denunciou Abdias Nascimento, que chamou atenção para o extermínio censitário da juventude negra, e o cultural-epistemológico, que suprime nossas formas de existir, criar, expressar e resistir.

Clóvis Moura, Kwame Ture, Frantz Fanon, Carlos Hasenbalg e Abdias Nascimento, em distintos contextos, desvelaram a engrenagem do racismo que persegue homens negros como alvos prioritários. Hoje, vemos esse roteiro se repetir: as fotos dos MCs da Mainstreet, das mobilizações pela liberdade de Poze e agora de Oruam, ou mesmo dos que defenderam Galo, Smith e Frank no passado, mostram quem está na linha de frente: homens negros, jovens ou não. É só!

Não há financiadores estrangeiros, fundações, nem professores universitários, e raríssimos parlamentares se arriscam nessa "polêmica". Estamos falando do mc mais ouvido das principais plataformas digitais do país, de segundo gênero musical mais escutado do país. Oruam não é apenas o MC mais escutado do país — é filho de alguém. Alguém que o Estado queria que fosse apenas mais uma estatística.

É muito forte que de uma geração pra outra de homens negros, um garoto com menos de 25 anos tenha tanto sucesso sem fazer o mesmo que seu pai. Forte demais para o sistema, que tenta colocá-lo de volta no seu lugar. Aquele lugar reservado pra nós, cadeia e cemitério. Poze, por sua vez, ousou sair do crime e se tornar um dos maiores artistas do Brasil.

O jovem piu, segundo a mídia, criminoso procurado, sim era um menor que cometeu atos infracionais e deixou a vida do crime para se tornar MC, numa oportunidade que Oruam e a mainStreet deram a ele depois de show no CPX do alemão. Ambos desafiam as expectativas que o sistema reservou para nós. Kwame Ture alertava que o ataque aos homens negros visa, entre outros objetivos, controlar a reprodução da população negra — estratégia colonial refinada nas Américas e na África mesmo no século XX e XXI. Clóvis Moura, ao cunhar o conceito de "escravismo pleno", mostrou como, até 1850, apenas os escravizados lutaram por sua liberdade, sem aliados. Abdias ampliou o debate ao expor o genocídio como projeto multifacetado, sustentado por uma sociedade de classes que nega nossa humanidade.

A foto das manifestações por Oruam e Poze é um diagnóstico cruel: estamos sozinhos. Como os escravizados do passado, carregamos o fardo de resistir sem solidariedade estrutural. Somos tratados como bandidos ou cúmplices, nossos erros — reais ou inventados — são usados como justificativa para nos excluir da esfera pública em todos os sentidos. Todos nós, homens negros, temos histórias de familiares ou amigos que "devem algo à justiça" num sistema que nos condena até por correr — como aquele irmão que corre de colete, porque é perigoso preto correr no Brasil.

4Oruam lançou, no dia de sua prisão, a frase: "Uma hora eles vão ter que me escutar". Mas não podemos esperar que o sistema nos ouça. Precisamos nos ouvir, fortalecer a união do nosso povo e construir alianças que não dependam da caridade de terceiros. Enquanto o funk for "preto demais", os presos forem "pretos demais" e nossas dores forem "polêmicas demais", seguiremos lutando sozinhos — mas, como ensina a história, a resistência negra nunca foi sobre solidão, e sim sobre sobrevivência coletiva. O desafi o secular permanece, juntar o nosso povo, mesmo “nas ruas cercadas por divisão”.

*Gabriel Siqueira é diretor da Federação de Favelas do Rio de Janeiro (FAFERJ), militante do MTST e da Ação Negra

**Esta artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum

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