SANTA CECÍLIA

“Um amor de filha”, por Henrique Wagner

Resenha sobre o romance da escritora paulistana Hanaide Kalaigian; apesar de estreante, ela domina a arte de contar história, fazendo uso de recursos literários extremamente eficazes

"Um amor de filha", de Hanaide Kalaigian.Créditos: Divulgação
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Uma obra de arte é feita de conteúdo e forma, como se sabe. Um romance conta uma história dessa ou daquela forma, mas é certo que conta uma história. A história de “Um amor de filha”, estreia no romance da paulistana Hanaide Kalaigian, envolve a relação de uma mãe e uma filha, depois da ausência do marido e pai, em meio a uma história informal da Armênia e de seus descendentes que chegaram ao Brasil na década de 1930. Kalaigian resolveu contar sua história de forma tradicional, usando uma protagonista-narradora que, por fazer parte da história, naturalmente não é onisciente. Sabemos apenas o que ela consegue saber. Mas o que ela nos mostra é mais que suficiente.

Tudo começa com um misterioso telefonema, atendido pela filha de Meliné, Aline. Telefone fixo, Aline, que mora com os pais, atende-o e ouve palavras duras vindas do outro lado, ameaçadoras, inclusive. A jovem de 28 anos bate o telefone e, possessa, xinga até não mais poder. A mãe a socorre, tenta saber o que houve, mas a filha se recompõe, desconversa e vai para o quarto.

Meliné Titizian tem 57 anos, é descendente de armênios, artista plástica, com ateliê na edícula da casa onde mora com Zohrab, também descendente de armênios, dono de uma fábrica de calçados em Franca, interior de São Paulo, mas com escritório no bairro de Santa Cecília, centro da capital paulista, onde trabalha Aline, única filha do casal. Embora artista plástica, Meliné é sobretudo mãe e dona de casa. Trata a filha como se a moça fosse adolescente, e cuida da casa como uma mulher prendada, recatada, do lar. Mantém acesa a tradição de seu povo por meio, sobretudo, da culinária, rica em boereg, mantá e radik, entre outras guloseimas trazidas por imigrantes armênios ao Brasil. A propósito, o livro traz, nas últimas páginas, um “elucidário” que, além de traduzir os termos da língua armênia, usados pela autora ao longo da história, situa o leitor dentro da História da Armênia, marcada pelo que alguns historiadores consideram ser o primeiro genocídio do século XX, perpetrado pelo Império Otomano entre 1915 e 1923. O resultado é cerca de 600 mil a um milhão de pessoas mortas, e uma diáspora que espalhou mais de 7 milhões de armênios mundo afora. E então voltamos a Meliné, Zohrab e Aline.

A autora, embora estreante, domina a arte de contar história, fazendo uso de recursos literários extremamente eficazes. Exemplo: a narradora avança na história, contando apenas o início de algo relevante e tenso, e depois recua, deixando o leitor ansioso, com o famoso “gostinho de quero mais”. Vide abaixo:

“E pensar que, mesmo com todas as adaptações e tudo o que fizeram, minha casa se manteve inteira. Cama hospitalar, cadeira de rodas, cadeira de banho, home care, oxigênio, três cuidadores se revezando em turnos de oito horas, folguistas. Uma tralha gigantesca se apoderou do espaço, nem parecia mais a minha casa. Achamos mais fácil montar o equipamento na sala. Na verdade, eu nem tinha condições de achar nada, Meguê e a equipe médica decidiram que seria melhor que eu ficasse embaixo para evitar subir e descer escadas o dia inteiro. Tiraram os sofás, as duas mesinhas laterais, a de centro e todo aquele monte de livros espalhado sobre a mesa de jantar. Não ficou nenhuma caixinha de prata, vaso ou enfeite, nem o livro do Monet, que decorava a mesa de centro, aberto na página da pintura impressionista de que eu tanto gostava.

Mas isso tudo foi bem depois.”

Recurso dos mais simples, mas que funciona tão bem quanto as receitas de bolo de nossas avós. O que a autora fez no trecho acima? Ela, subitamente, por meio de sua protagonista-narradora, descreveu uma situação absolutamente nova – e tétrica – no cotidiano da mãe de Aline, e depois recuou com um  “mas isso tudo foi bem depois”. Que faz o leitor? Imediatamente tenso, alerta e ansioso, passa a ler o texto com pressa, movido pela ânsia de saber o resto da “fofoca”, movido pela ânsia de chegar ao “bem depois”, afinal, até aquele momento Meliné gozava de excelente saúde, e estava apenas preocupada com a filha, depois daquele terrível telefonema.

O segredo não demora muito a ser descoberto por todos, Meliné e leitores. Aqueles dias todos em que Zohrab passava em Franca, supostamente trabalhando, escondiam, em verdade, uma vida dupla. O pai de Aline é confrontado pela filha diante da mãe, e confessa que tem mulher e dois filhos na cidade onde funciona sua fábrica de sapatos. E mais: pede a separação. Meliné entra em colapso.

A partir daqui começa uma outra parte do breve romance de Kalaigian. Meliné adoece, descobre um câncer, mas também descobre um álbum de retratos em seu ateliê, contendo fotos de seu casamento com o agora bígamo Zohrab. A mãe de Aline começa a achar confortável escapar da realidade voltando ao passado. Para nós, leitores, é uma dádiva, pois a narradora, já nossa amiga, vai-nos contando traços, características da tradição de seu país, o modo como as famílias decidiam os pares que se casariam, a liturgia, as festas, as roupas assim e assado, o casamento em si, os doces armênios, a submissão da mulher ao marido e aos homens em geral. Aqui interfere Aline, finalmente tornando-se figura ativa na história, a partir da necessidade de resolver questões práticas como a partilha, a pensão a ser dada à mãe pelo pai, a venda (ou não) da casa onde moram, a fábrica de sapatos. Zohrab evita Melinè – já evitava antes; a mulher é que não queria enxergar –, o que abre espaço para a presença de uma Aline mais madura, senhora de si, com namorado, dormindo fora seguidamente etc. Aline aponta para o futuro. Esse espírito de emancipação vai sendo compartilhado com a mãe, que inicialmente resiste, pelo vínculo à tradição, como um animal com bridas que já não consegue mais trotar sozinho pela mata. Mas com o tempo a relação entre as duas mulheres vai se fortalecendo, e Meliné começa a questionar toda a sua vida de mulher casada, e mesmo a vida anterior ao casamento.

Romance muito bem escrito, com a evocação de uma cultura pouco difundida por aqui, “Um amor de filha” nos faz refletir sobre o que já se achava no começo da história, ou seja, o título: amor de filha de quem? De quem é o amor e quem é a filha nessa história?

Hanaide Kalaigian estreia como poucos, e precisa ser mais lida – mais percebida, aliás. Seu livro, publicado em 2023 pela Autêntica, merecia, no mínimo, ter chegado à final de algum grande prêmio literário brasileiro.

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